Aos 16 anos, Ildefonso Martins já era contrabandista. Logo no primeiro serviço passou armas para o lado espanhol, no início da guerra civil, em 1936. Acumulou décadas de aventuras como “comandante de bando”, a atravessar o Guadiana a nado, traficando mercadoria que vendia ao dobro do preço. Mais do que a dureza, era o risco: a guarda fiscal atirava a matar. Uma vez, num frio mês de janeiro, no início dos anos 50, foi apanhado pela guarda à chegada à margem portuguesa. Obrigaram-no a deixar a carga e caminhar nu e descalço até casa, sete quilómetros por caminhos e veredas. Conta-se que bebeu uma garrafa inteira de aguardente, para aquecer. Ildefonso era um homem corpulento e galante, gostava de festas e de tocar acordeão. Morreu há um ano, a quatro dias de celebrar o 101º aniversário, mas as peripécias deste e doutros contrabandistas estão imortalizadas em vídeo, um trabalho de recolha de testemunhos que o município de Alcoutim realizou a propósito da organização do Festival do Contrabando.

Ildefonso Martins começou como contrabandista aos 16 anos. Acumulou décadas de aventuras como "comandante de bando" (foto: Município de Alcoutim)
Durante três dias, as vilas de Alcoutim e Sanlúcar de Guadiana, unidas por uma ponte flutuante, juntam-se numa festa que traz à região raiana milhares de pessoas. Atores recriam momentos alusivos às atividades do contrabando, há um mercado de época, ofícios artesanais, teatro e circo de rua e muita música.
Júlio Cardoso, técnico de turismo do município de Alcoutim, é um dos organizadores do Festival do Contrabando
«O festival é uma homenagem aos contrabandistas, mas também aos guardas fiscais, aos barqueiros, pescadores, almocreves, taberneiros, às famílias que viveram anos de fome e pobreza. O contrabando, apesar de ilícito, era o sustento de muitas famílias», explica Júlio Cardoso. Durante a guerra civil espanhola, entre 1936 e 1939, «as pessoas passavam mesmo fome», explica o técnico de turismo do município de Alcoutim. Os produtos contrabandeados eram bens de primeira necessidade. «O café é o grande embaixador, mas também a farinha, açúcar, ovos, trigo, pedras de isqueiro, sabão…». De Espanha chegavam miolo de amêndoa, perfume, tecidos, como a bombazine ou os xailes de Manila, e calçado, que por cá eram mais caros. Vivenciar este mundo antigo está à distância de uma visita à vila de Alcoutim, em março de 2023, data da próxima edição.