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5 setembro 2022
Texto de Sandra Costa Texto de Sandra Costa Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro Vídeo de João Lopes Vídeo de João Lopes

Guadiana à vista

​​​​Bem-vindos à raia algarvia: do contrabando de Alcoutim à flor de sal de Castro Marim.​

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​A visão do rio traz uma sensação de frescura, depois de quilómetros e quilómetros de campos queimados pelo sol, sob o calor opressivo do verão algarvio. Nas duas margens, frente a frente, separadas por 220 metros de água, as vilas de Alcoutim e Sanlúcar de Guadiana são espelhos uma da outra, com o casario branco a trepar a colina. De ambos os lados, repousam veleiros que sonham atravessar o Atlântico.

A lancha que se apanha no cais de Alcoutim, decorada com as bandeiras portuguesa e espanhola, reduz a poucos minutos a distância entre os dois países. “¡Buenos días!”, lançam mulheres das janelas das casas térreas. O idioma é a diferença visível entre as duas vilas. Na sombra das esplanadas, as conversas escorrem em inglês. Nas duas margens, há gente de todo o mundo a morar em quintas à beira-rio, seduzida pela tranquilidade e Natureza virgem. Muitos são velejadores ou aspirantes, chegam pelos canais do Mediterrâneo com o objetivo de cruzar o Atlântico. Alguns apaixonam-se e ficam, outros acabam por regressar. «O Guadiana é o último porto de abrigo natural no sudoeste da Europa», explica Júlio Cardoso, técnico de turismo do município de Alcoutim. Também ele, há 25 anos, trocou Sintra por Sanlúcar. Por menos do que pagaria por um quarto  na capital, tem uma casa com pátio e uma vista fabulosa sobre o rio.


Lontra feita de lixo, criação do artista plástico Bordalo II, uma homenagem aos tempos em que o contrabando era o sustento de muitas famílias raianas

Da esplanada do quiosque de Alcoutim espreita a estátua do guarda fiscal, no cais velho o contrabandista olha, esquivo, a outra margem. Uma gigantesca e colorida lontra feita de lixo, criação de Bordalo II, lembra os tempos em que o contrabando era o sustento de muitas famílias. Também os contrabandistas atravessavam o Guadiana a nado, ao abrigo da noite, com a carga a boiar, presa por uma corda aos dentes. Memórias celebradas todos os anos no Festival do Contrabando, uma festa que atrai milhares de pessoas e concilia recriação histórica com teatro, circo de rua e muita música: cante alentejano e flamenco. Durante três dias, uma ponte suspensa torna ainda mais concretos os elos que unem as margens algarvia e andaluza.


A médica dentista Sara Neves gosta de aproveitar a hora do almoço para «apanhar fresco» à beira-rio, aquando das consultas semanais que a trazem a Alcoutim

«É o rio que torna Alcoutim especial», diz a médica dentista Sara Neves. Nas consultas semanais que a trazem à vila, aproveita a hora do almoço para «apanhar fresco» à beira-rio. Sara conhece a região desde criança pois, sendo a mãe de Castro Marim, passou as férias grandes nas praias: Altura, Cabeço, Monte Gordo, Praia Verde. Em Castro Marim, onde tem uma clínica, aprecia a calma e a simplicidade das pessoas. Gosta de ouvir as andorinhas à tarde. «Faz-me recordar a infância».


Do rio nascem todas as diversões. Uma das mais apreciadas é a praia fluvial do Pego Fundo

Do rio nascem todas as diversões, da praia fluvial do Pego Fundo, que atrai «muitos espanhóis», aos desportos náuticos, como a canoagem. Do Centro Náutico de Alcoutim «já saiu uma campeã», recorda a médica. Do rio e da serra vem a gastronomia raiana: a enguia, que se come frita e em ensopado, a lebre e o javali, a amêndoa, a alfarroba e o figo, bases da doçaria, os enchidos e o queijo de cabra.


Nuno Coelho trocou Lisboa pela aldeia de Corte da Seda. O rebanho de cabras da raça algarvia cumprimenta-o quando chega para lhes dar água

Quando o calor abranda, Nuno Coelho sai de casa, na aldeia de Corte da Seda, para dar de beber às cabras, um pequeno rebanho da raça algarvia, com bonita pelagem castanha pintalgada de branco, e cornos retorcidos. Os sons de chamamento são acolhidos prontamente pelos dóceis animais. Quando o dono se agacha, rodeiam-no e roçam o focinho nele, pedindo carinhos. Nuno é engenheiro alimentar. Quando, em 2010, foi despedido de um instituto público, com outros 120, deixou Lisboa para concretizar um sonho antigo. Regressou à terra da família e comprou um rebanho que chegou a ter 120 cabeças. Queria montar uma queijaria, mas o projeto enguiçou nos meandros do financiamento comunitário. Nuno já pensa em vender o rebanho e manter apenas uma dezena de cabras. Lamenta a ausência de estratégia política para a agricultura e a falta de água, que levou à debandada de quem ali morava. «A água é o princípio da vida», lembra.


Escadote-bicicleta, uma das muitas invenções de Jorge Aquilino, antigo mecânico do Exército, que criou na garagem um museu particular

Sara Neves faz questão de visitar um homem particular. Jorge Aquilino, antigo mecânico do Exército, é um inventor excêntrico que criou um museu particular na garagem de casa, à beira da Estrada Nacional 122, em Monte Francisco. Tem peças tão improváveis como um escadote-bicicleta ou um chuveiro que dá luz. O homem corpulento, de chapéu de palha e relógio de pulso encastrado num cadeado, outra das suas invenções, mostra as criações com orgulho. A preferida é um relógio feito de carretos de bicicleta. «Ia-me dando cabo dos carretos acertar o movimento da corrente com o tempo», ri-se. Na garagem-museu conserva moedas antigas, cadernos escolares de 1942, uma cartilha de 1911, uma tabuada de 1898… Talvez um dia o museu seja público, «já três presidentes da Câmara o prometeram».


Vista  do miradouro do Revelim, em Castro Marim, com o castelo ao fundo

No miradouro do Revelim, habitualmente ventoso, corre uma brisa quente e ouve-se o canto das cigarras. Deste ponto alto de Castro Marim avista-se o Guadiana, quase no final da sua caminhada de 800 quilómetros. De um lado, Vila Real de Santo António, do outro Ayamonte, as cidades que a ponte aproximou há 30 anos, transformando os barcos que cruzavam as margens em curiosidades turísticas. Da paisagem sobressaem as salinas, em talhos recortados na terra.


Custódio Gonçalves fez questão de continuar «a raça de salineiro», que vem da geração do avô

As salinas já foram o ouro branco de Castro Marim, quando o sal tradicional era requisitado pelas conserveiras de peixe de Vila Real de Santo António. «Há 50 anos, Castro Marim cheirava a sal», garante Custódio Gonçalves. O salineiro, de corpo seco e pele tisnada, mostra com gosto o rodo e o coador usados para mexer o sal e retirar a flor de sal. Fez questão de continuar «a raça de salineiro», que vem da geração do avô, apesar da dureza do trabalho, todo ele artesanal, debaixo do sol escaldante. «É preciso saber e é preciso ter gosto. Um gosto amargo, mas gosto», diz Custódio. A sua grande alegria seria ver jovens a continuar a profissão, poder ensinar-lhes o ofício. 

Nas salinas tradicionais, o trabalho é duro, todo ele artesanal, debaixo do sol escaldante

Depois de anos de declínio, quando as fábricas encerraram, o sal tradicional de Castro Marim conhece novo fulgor. Nas ruas da vila há lojas que vendem flor de sal, como o antigo mercado e a Casa do Sal. Há novos produtores a resgatar salinas abandonadas, o negócio torna-se rentável e ganha prestígio. «É o reconhecimento de um produto que contribui para a afirmação do território e a sustentabilidade da biodiversidade», diz Filomena Sintra, vereadora da Cultura. A dinâmica das salinas é vital para muitas aves migratórias e residentes. Guarda-rios, rolas do mar, garças reais, flamingos, patos, cegonhas… nomeia Custódio, que tudo sabe sobre as salinas.

 

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