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9 julho 2021
Texto de Carina Machado Texto de Carina Machado Fotografia de Mário Pereira Fotografia de Mário Pereira Vídeo de Miguel Gonçalves Vídeo de Miguel Gonçalves

A metamorfose da farmacêutica

​​​​​​​​Cátia abraçou as artes para ultrapassar o diagnóstico de cancro.​

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​Cátia Freitas tinha 38 anos quando disse adeus à “Drama Queen” (rainha do drama) que sempre soube incorporar e abriu mão do seu tão familiar pessimismo natural. Pouco mais de dois anos depois, reconhece que há momentos em que ainda se apanha presa a pequenas coisas, mas se há algo de que tem certeza é que «a forma como pensamos só depende de nós. Nós mandamos nos nossos pensamentos, por isso podemos mudá-los». Ela mudou. 

Com 18 anos, altura de escolher uma profissão, arrumou na arca das memórias as horas intermináveis que passava, em miúda, «a fazer bonecos», porque, como diz a brincar, gostava de desenhar, mas «estamos sempre a ouvir que os artistas são pobres!». Arriscou as Ciências Farmacêuticas, entrou em Coimbra, porém, ao fim de um trimestre não resistiu e anunciou aos pais que desejava ir para Artes. Regressou a casa, na Madeira, para fazer testes psicotécnicos e médicos, «que só me serviram para perceber que via mal. Um senhor na Secretaria da Educação disse-me: “Oh menina, não mude, entrou num curso tão bom! Vá desenhar para a janela!”». E assim voltou a Coimbra, com uns óculos novos e a arca dos sonhos fechada.  


A farmacêutica era uma mulher sempre ocupada. Agora, tem tempo para tudo

Entregou-se ao curso e adorou. Formou-se farmacêutica e Coimbra deu-lhe muitas grandes amizades. Os amigos são parte fundamental da sua vida. Representam o que diz ser o seu único vício, e foi atrás deles que em 2003 se mudou para Lisboa, onde reside. Trabalhou em farmácias comunitárias durante dez anos e depois na Indústria Farmacêutica. A vida era sinónimo de agitação. «Estava sempre em movimento, sempre ocupada, tinha sempre programas. Dou-me conta de como às vezes fugia da tranquilidade para não poder pensar e enfrentar aquelas coisas - coisinhas, que não estão bem na nossa vida».  

Franzina, em Abril de 2018 detectou um quase imperceptível alto na zona abdominal. A médica pediu-lhe um conjunto de ecografias, que só fez semanas depois: «andava com muito trabalho!». Os resultados vieram estranhos. Os da ressonância magnética seguinte não chegaram menos alarmantes. «Fiquei aturdida». Foram os colegas quem de imediato reagiu: marcaram-lhe uma consulta de ginecologia, levaram-na a fazer análises. «Devo ter falado, entretanto, com os meus outros amigos. Sei que me ligaram a dizer “esta noite vamos para tua casa”».  

Cátia mudou nessa tarde, enquanto esperava numa fila, em Campolide, para comprar caracóis. «Estava naquela fila imensa quando recebi os resultados das análises. Os marcadores tumorais estavam todos disparados. “É cancro”, percebi. Julguei ser no ovário. Senti-me a cair em mim, mas travei imediatamente. Pensei em catadupa: “Não, não, não, não, não. Eu sei como é que estas doenças evoluem, sei que o estado de espírito, as emoções não resolvidas, o stress excessivo e a forma como se pensa têm óbvia influência no sistema imunitário, e o pessimismo e o fatalismo vão agravar o prognóstico de uma doença…". Por isso, sim, era cancro, mas tinha mesmo de esperar pelos caracóis, porque ia ter muita gente em casa».  

A primeira vez que entrou no IPO de Lisboa foi dentro de um vestido novo e em cima de uns saltos altos que de outro modo nunca usaria: indumentária de guerra para desconsiderar o inimigo. Na verdade, a doença nunca a interessou. Focou-se imediatamente na cura. «O cancro é uma degeneração das nossas células, e eu decidi que não fazia sentido encetar uma luta contra mim mesma. Procurei, portanto, o que está ao meu alcance fazer, deixei que os médicos se preocupassem com a sua parte». Vindo da “negativa-mor”, este reposicionamento perante a vida surpreendeu e animou mesmo os mais próximos, que a acompanharam sempre. «A minha família e amigos tornaram-se quase omnipresentes. Isso foi essencial. Ajudaram-me, de certo modo, a responsabilizar-me pela minha cura quando me vieram com livros e comida biológica e artigos e filmes… O seu carinho contribuiu para me modelar o pensamento, deu-me algo por que lutar, porque o facto é que quero viver para passar o maior tempo possível com estas pessoas, que adoro». 


«Não precisava de um aviso tão drástico. Mas tudo bem, há pessoas de compreensão mais dificil!», diz Cátia Freitas com humor ​ 

​Esteve no bloco operatório do IPO duas vezes, coincidindo com as duas únicas vezes em que chorou em todo o processo. Na primeira foi-lhe retirado um tumor de mais de um quilo. Ficaram outros, porque a lesão que este provocara era bastante mais extensa e grave do que o previsto e por isso tiraram-lhe também o apêndice e fez uma histerectomia total. «O facto de não poder ter filhos foi um choque. Chorei muito. Foi a coisa mais difícil de ultrapassar. Eu adoro crianças». Rapidamente, porque assim tinha de ser, geriu a situação. Aceitou. E avançou para a próxima casa: nomear o inimigo. Recorda-se de receber o resultado da biopsia ao tumor e de achá-lo «ridículo! Tinha uma neoplasia mucinosa do apêndice, um cancro raro num órgão que é como os dentes sisos: não precisamos dele para nada!». Tanta ironia só podia ser um aviso, uma chamada de atenção da vida para abrandar e reconhecer o que é realmente importante. Diz, com humor, que «foi drástico, não era preciso tanto. Mas tudo bem: há pessoas de compreensão mais difícil!». 


Cátia regressou ao desenho com uma homenagem aos amigos, que retratou sobre papel reciclado​

Até à segunda cirurgia, empenhou-se em encontrar um novo estilo de vida. «Li muito sobre muitas coisas, poucas em fontes científicas». Interessou-se, especialmente, por relatos de experiências pessoais de cura, e identificou um padrão em todos eles: a redução drástica do stress e as alterações radicais na alimentação. Adoptou as estratégias e iniciou um caminho de experimentação: fez reiki, meditação, exercícios de respiração, ioga, psicologia, leu vários livros de autoajuda que tanto costumava criticar... Eliminou o açúcar, as farinhas refinadas, diminuiu o consumo de proteína animal, aumentou o de produtos biológicos, faz suplementação diária… As suas expedições alimentares levaram-na até à dieta macrobiótica e foi no Instituto Macrobiótico de Portugal que as expedições espirituais se depararam com algo igualmente marcante: «Disseram-me para resgatar as paixões de infância. E foi o que eu fiz». Reabriu a arca dos sonhos: «Olhei para o monte de papéis da reciclagem, peguei nos lápis que há muito estavam postos de lado, e comecei a desenhar». Desenhou o retrato dos amigos, depois paisagens urbanas… «Fi-lo por gosto, do mesmo modo que voltei a ter aulas de piano, pelo prazer. E senti-me melhor, tranquila».  

​Voltou ao IPO um ano depois para a remoção dos restantes tumores e, inesperadamente, de vários outros órgãos, já bastante afectados: a vesicula, parte do fígado, o baço, um bocado do diafragma, uma parte considerável do intestino. Acordou com dor e ostomizada, mas foi ela quem consolou os médicos: «Tudo bem, as pessoas conseguem viver sem montes de órgãos, e eu estou aqui. É o que importa». Estava nos cuidados intensivos e chorou, sim, mas porque o enfermeiro, que cumpria um dia de greve, estava, mesmo assim, ali, a cuidar dela. O acto de altruísmo ainda hoje a emociona, e assume, de voz embargada, que «tenho para com as pessoas do IPO uma dívida de gratidão».  

O início da pandemia teve pouco impacto na sua vida. Estava em casa, em recuperação, acompanhada por uma amiga. «Foram meses de sossego necessário e reserva pessoal, até porque estava à espera da última cirurgia para retirar o saco da colostomia e repor o funcionamento intestinal e não queria arriscar não ser operada». O momento chegou, passou, e a vida prosseguiu.  


Cátia aproveita ao máximo todos os momentos. «O presente é tudo o que temos»

Em Agosto de 2020 foi recompensada com o amor. Conheceu o namorado, um artista! «É músico. E arquitecto». Em Dezembro ficou desempregada, e viu aí a oportunidade para estudar Desenho. Inscreveu-se numa escola e pelo meio fez umas ilustrações para o site de uma clínica de psicologia, atrás das quais veio o desafio para novos projectos na área da literacia em saúde mental. «Estou entusiasmada, vamos ver como corre». Mas sem pressões. Cátia deu-se a si própria uns meses de calmaria. O depois logo se vê. «Talvez volte à farmácia comunitária, talvez o Desenho seja o caminho. Não tenho propriamente um objectivo definido. Trabalho para acontecer alguma coisa, mas não penso muito no futuro. E principalmente procuro não andar a marinar no passado, porque as emoções estagnadas não trazem saúde. O presente é tudo o que temos», e hoje a noite é para ver pirilampos na serra de Sintra.

 
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