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19 março 2018
Texto de Sandra Costa Texto de Sandra Costa Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

48 milhões de vezes NÃO

​​​​​​​​​​​​​As falhas de medicamentos tornaram-se banais.​
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​Em 2017, faltaram 48,3 milhões de embalagens de medicamentos em Portugal, na sua maioria receitadas pelos médicos. Este resultado foi apurado pelo Observatório dos Medicamentos em Falta, do Centro de Estudos e Avaliação em Saúde (CEFAR) da Associação Nacional das Farmácias (ANF), que regista as encomendas não satisfeitas pelos distribuidores. O fenómeno afectou a capacidade de resposta das farmácias às necessidades dos doentes, no momento da dispensa. Todos os meses, cerca de 2.000 farmácias associadas da ANF reportam problemas. Nenhuma está a salvo.

Mal-estar, insegurança ou mesmo angústia são os sentimentos mais comuns dos doentes face às falhas de medicamentos nas farmácias. «Muitos doentes, sobretudo crónicos, sabem que a vida deles depende da manutenção daquele efeito e ficam muito angustiados, pedindo que seja encontrada uma alternativa imediata», explica Miguel Silva Mendes, director do Departamento de Cardiologia do Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental, que reúne os hospitais de Santa Cruz, de Egas Moniz e de S. Francisco Xavier.​

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Nuno Monteiro Pereira, urologista no Hospital Lusíadas Lisboa​

Um efeito comum da falha na aquisição do medicamento é a interrupção da terapêutica, porque muitos doentes só avançam com a compra do medicamento quando a embalagem terminou ou está a terminar. Quando não há, falham a toma. Mais grave é quando a interrupção da terapêutica desemboca no abandono da mesma, o que acontece sobretudo com os doentes pouco motivados. «Podem aproveitar para prolongar a interrupção, sobretudo se não sentem um efeito negativo da falta da medicação», explica o médico cardiologista.

Nas doenças crónicas, como a diabetes, não encontrar o medicamento nas farmácias pode criar um pretexto para a interrupção. «Sobretudo nos doentes com fraca adesão  terapêutica», alerta a médica responsável pelo Núcleo de Diabetes do Hospital Distrital de Santarém, Cristina Esteves.​

As falhas de medicamentos trouxeram um problema novo à actividade dos médicos. Daniel Ferreira, coordenador de Cardiologia Clínica no Centro Cardiovascular do Hospital da Luz Lisboa, começou a pedir aos doentes para o avisarem com antecedência, enquanto ainda têm medicação para vários dias. Para evitar a interrupção dos tratamentos, disponibiliza-se a prescrever alternativas quando os doentes não conseguem aviar as receitas originais.

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Estes são 12 dos 20 medicamentos do top de faltas de Dezembro. Não conseguimos sequer fotografar as apresentações dessa lista de Avamys, Cholib, Doce Alívio, Lorazepam, Thrombocid (40 mg e 100 mg), Thyrax e Xanax​

Este problema afecta todo o tipo de fármacos, de marca e genéricos, nas mais variadas especialidades médicas. Nos genéricos, o CEFAR contabilizou mais de 951 mil embalagens em falta, só no mês  de Dezembro de 2017. O médico Manuel Barbosa confirma que se tem verificado faltas nos genéricos, sobretudo nalguns anti-hipertensores. A opção do imunoalergologista, que também exerce Medicina Interna, é prescrever um genérico de outro laboratório, mas considera que «a troca nem sempre é inócua, porque os efeitos secundários, por exemplo, devido aos excipientes, podem variar».

«É sempre negativo quando um doente está estabilizado com uma determinada medicação e ela falha, seja porque o medicamento não está disponível ou não há determinada dosagem», concorda o cardiologista Daniel Ferreira. Nestes casos, é preciso substituir o fármaco em falta por outro com acção análoga. Normalmente a troca é feita sem problemas de segurança, mas por vezes é necessário fazer um acerto da terapêutica. Nestes casos, «é alterado o equilíbrio metabólico, farmacológico, que pretendemos com a  estabilidade  dos fármacos», considera o coordenador do serviço de Endocrinologia do Hospital da Luz Lisboa, Francisco Sobral Rosário.

Mais complicado é quando não há medicamentos alternativos, de outra marca ou genéricos. «A situação pode tornar-se  complexa quando não há alternativas à medicação. Já aconteceu com alguns medicamentos para a área cardiovascular», denuncia o cardiologista Daniel Ferreira.

A falta de medicamentos nas farmácias prejudica sobretudo os doentes, que têm de voltar a recorrer ao médico à procura de alternativas. Mas também causa transtornos aos médicos, que vão muito além da sobrecarga das consultas médicas. «De repente vemos o nosso armamentário reduzido: queremos prescrever e não temos o medicamento, nem nada igual ou parecido», lamenta Nuno Monteiro Pereira, urologista no Hospital Lusíadas Lisboa. Quando é obrigado a modificar a prescrição, porque o medicamento que deseja não está disponível, evita que o doente se aperceba, «para não lhe criar ansiedade».

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Miguel Silva Mendes, director do Departamento de Cardiologia do Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental​

«Para o médico, é sempre desagradável quando os medicamentos não estão acessíveis. Pode até criar a ideia no doente de que o médico não está actualizado e recomendou um medicamento que já não existe», queixa-se Daniel Ferreira. A frustração é generalizada. «Claramente, é um tema que nos preocupa a nós, médicos, pois sabemos que pode ter implicações graves para o nosso doente», afirma José Ferreira Santos, director clínico do Hospital da Luz Setúbal.

Raramente os médicos são informados sobre a falha de medicamentos no mercado antes da prescrição e de receberem as queixas dos doentes. Também estão pouco informados quanto às causas do problema: recebem informações esporádicas dos laboratórios, mas normalmente essas explicações chegam-lhes por via indirecta, através dos delegados de informação médica, ou de rumores. Ouve-se que os medicamentos são canalizados para mercados onde o preço de venda ao público é mais alto, como os países do Norte da Europa ou, há alguns anos, Angola. O factor económico é outra das causas apontadas: «Por vezes, a decisão de retirar os medicamentos do mercado deve-se, seguramente, a motivos económicos, porque o medicamento não é rentável», diz Daniel Ferreira.

Todos os médicos entrevistados pela revista Farmácia Portuguesa lamentam a inexistência de uma comunicação directa sobre o assunto. «A falha de medicamentos é um problema de saúde pública, que seria importante perceber por que acontece e tentar resolver. Nunca tivemos uma comunicação formal ou uma recomendação do que deve ser feito. É uma área que precisa de alguma reflexão e intervenção», sintetiza José Ferreira Santos.​

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