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3 agosto 2023
Texto de Irina Fernandes Texto de Irina Fernandes Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro Vídeo de André Germano Vídeo de André Germano

Vencer sobre rodas

​​​​​​Tetraplégico desde 2019, Igor Raevski soma vitórias no rugby.​

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«Ó Jorge, diga-me uma coisa, você é capaz de andar só com uma perna?», interpela Igor soltando uma boa gargalhada. De mãos ao volante, Igor Raevski, 34 anos, aguarda que Augusto Jorge Cosme, 64 anos, lhe devolva a “perna”, isto é, uma das rodas da sua cadeira. «Atenção, eu nunca o ajudo nem com um só dedo. Ele faz tudo sozinho!», assevera o técnico de desporto adaptado e seccionista da equipa de rugby do Casa Pia Atlético Clube, enquanto Igor se transfere do seu carro para a cadeira de rodas, sem ajudas. Todas as semanas sai do Montijo, onde mora, até às instalações do Casa Pia, no Estádio Pina Manique, em Lisboa. Vai para os treinos: Igor é jogador de rugby em cadeira de rodas, vertente de 4 e 5.


«Inicialmente treinava num pavilhão na margem Sul, mas também tive alguns meses sem treinos por não haver local». Em novembro do ano passado, o Casa Pia Atlético Clube acolheu Igor e outros jogadores, permitindo a prática da modalidade

«Quando estamos em campo, parece que andamos ali só aos choques e empurrões, não é? Mas o rugby é um jogo de muita estratégia», confidencia o jovem natural de Quixinau, capital da Moldávia, ex-jogador de andebol.

Tinha 30 anos quando, no verão de 2019, um mergulho mal calculado numa piscina o deixou tetraplégico. «Um amigo perguntou-me se eu já tinha experimentado saltar para a água à tou​reiro…». Em clima de festa, aceitou o desafio e tentou executar a proeza. «Ao fazer o salto, rodei demais e fui ao fundo batendo com o topo da cabeça… Danificou-me cerca de 60% da medula, fraturei a cervical 7», explica Igor, que vive em Portugal desde 1998.

Ainda debaixo de água, a tentar voltar à superfície, percebeu que o corpo não lhe obedecia. «Vi que as minhas pernas não se estavam a mexer. Consegui subir usando as mãos, e foi aí que pedi ajuda».


«Comecei a conduzir um ano e meio depois de ter acontecido o acidente»

30 de  junho,  dia  desta  reportagem  para a Revista Saúda, é uma data que Igor nunca esquecerá. «Faz quatro anos que tive o acidente. Nos anos seguintes foi bem pior…», confidencia. Passado um mês do acidente, teve «a primeira crise». Conheceu o diagnóstico de tetraplegia no dia do acidente, mas recusou-se a aceitá-lo. «Mais tarde é que uma médica me disse: «Igor, tens noção de que não vais andar mais?». Hoje, conto-vos isto com um sorriso na cara, mas, na altura, foi duro. Não foi fácil…». A vida tal como a conhecia e os sonhos morreram nesse minuto. «Deseja-se desistir de tudo… Ainda hoje há dias em que sinto revolta…». Porém, porque «o caminho é para a frente», cedo se distanciou de estados depressivos e da apatia.

Nos corredores do Hospital de São José e do Hospital Curry Cabral, e ainda a cumprir sessões de fisioterapia em Alcoitão, decidiu que haveria de vencer na vida, ainda que sobre rodas. E haveria de cumprir a mais hercúlea das missões, renascer. Fez da cadeira de rodas uma «aliada», e nunca uma prisão ou uma fragilidade. «Mudei o chip, e isso foi muito importante. Deixei de ver o copo meio vazio, para ver o copo meio cheio». Reaprendeu a movimentar-se, a vestir-se, a fazer a higiene diária, a transferir-se da cadeira para o sofá, da cadeira para o carro.


«O rugby é um jogo que exige muita estratégia»

«Não vale a pena olhar para trás. O mais importante é trabalhar, evoluir e melhorar». O salto «numa piscina com 1,60 metros de profundidade» foi «uma irresponsabilidade». Com a época balnear a decorrer, Igor deixa uma mensagem: «Se vão dar um mergulho numa piscina, façam-no numa que já conhecem e na parte mais funda! O recomendado é que tenha de profundidade pelo menos o dobro da vossa altura!».

E, «porque muitas pessoas não sabem», lembra que, «seja num acidente de carro, mota ou mergulho, não se deve mexer na pessoa! Deve-se, sim, imobilizá-la, ter a certeza de que está consciente e aguardar a chegada da ambulância».

Embora tetraplégico desde 2019, Igor, técnico de informática, irradia vitalidade e alegria. «Estou numa cadeira de rodas, mas isso não me impede de ir nadar, passear e fazer tantas outras coisas que qualquer outra pessoa faz!».


Desta vez no Pavilhão Multiusos de Odivelas, cumpriu um treino de três horas

Sempre que pode, vai à praia para nadar. «Para mim, é mais fácil nadar no mar por causa da flutuação. E como a água é um pouco fria, fico em pé. O corpo entra em choque térmico e ativa-me a espasticidade». Esses minutos, dentro de água, são revitalizantes e de prazer desmedido. «Depois de sofrer um acidente destes, quem é que não gosta de ficar em pé sem ajuda de ninguém?», suspira. Ainda há umas semanas foi à praia da Comporta. «Os nadadores-salvadores até estavam de pé, com medo de que eu me afogasse [risos]».

A filha Ariana, agora com cinco anos, foi, desde a primeira hora, a sua principal motivação. Tornou-se a âncora que o segurou à vida. «Não queria que ela fosse obrigada a viver sem um pai», confidencia com comoção, lembrando que Ariana tinha um ano e nove meses quando ele sofreu o acidente. «Acho que ela não se lembra de mim sem cadeira de rodas, só vendo vídeos nossos». O amor pela filha fê-lo desbravar montanhas em busca de força e esperança. «Quando se é pai, algo de novo nasce dentro de nós. Acredito que um pai tem um papel muito importante na formação de uma futura mulher…».


Tanto a jogar como na vida, Igor é resiliente e focado em vencer

Não menos importante, destaca, foi a sua progenitora, Valentina Raevski, de 57 anos. «Se não fosse a minha mãe, não sei onde eu estaria… Ela andou comigo para todo o lado». Foi dela que herdou a capacidade de foco, resiliência e vontade de vencer. «Desde pequeno, fui ensinado a não desistir à primeira. Se algo não dá, é voltar a tentar».

21h27, Pavilhão Multiusos de Odivelas. É aqui que se realiza o treino de rugby de Igor, com fim previsto para as 23h00. Já equipado com luvas próprias e sentado na cadeira, o atacante Igor deixa escapar um bocejo longo. «Isto não é nada, já passa…», diz-nos a rir. Em campo estão oito jogadores vindos de diferentes pontos do país. «Treinamos juntos, para puxarmos uns pelos outros».


No passado dia 24 de junho conquistou a I Taça de Portugal de rugby em cadeira de rodas, ao lado dos restantes elementos da equipa

No dia 24 de junho, no Pavilhão Dr. Aristides de Sousa Hall, na Universidade de Aveiro, ao lado dos parceiros de equipa, Igor ajudou a conquistar a I Taça de Portugal de rugby CR 4. «Demonstrámos que tudo é possível quando se quer e se joga em equipa».

O talento de Igor para o desporto vai muito além do rugby. Brilha também na modalidade de atletismo adaptado. Praticante de atletismo há nove meses, já conquistou o primeiro lugar no Meeting do Trabalhador 2023, prova de atletismo de velocidade de 200 metros.

 


«O desporto sempre foi muito valorizado na minha educação. Na Moldávia, comecei aos dez anos nas danças de salão, depois fiz karaté e luta greco-romana», explica. Tanto a jogar como na vida, nunca permitiu que o acidente lhe ceifasse o sorriso e o sentido de humor. Ele é o primeiro a brincar e a desconstruir a sua condição de deficiência porque, acredita, «o humor ajuda a que fiquemos mais conscientes».

«Querem mesmo que vos mostre as minhas medalhas? Eu já sou tetraplégico, querem que eu também fique corcunda?», brinca entre risos, do outro lado do telefone, dias antes da reportagem.​
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