Política de utilização de Cookies em Revista Saúda Este website utiliza cookies que asseguram funcionalidades para uma melhor navegação.
Ao continuar a navegar, está a concordar com a utilização de cookies e com os novos termos e condições de privacidade.
Aceitar
8 fevereiro 2019
Texto de Sandra Costa Texto de Sandra Costa Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

Uma lei, sem favor

​​​​​Por falta de um estatuto legal, cuidadores informais dependem da boa vontade de quem os rodeia.​

Tags
​Há 21 anos que a vida de Ana Paula Gomes é cuidar do filho. David sofre desde bebé de paralisia cerebral e hemiparesia, que lhe imobiliza o lado esquerdo do corpo. Até aos 18 anos, frequentou a escola e aprendeu a escrever algumas palavras, mas esse conhecimento perdeu-se. Hoje só «sabe coisas funcionais da vida, como despir-se ou ir buscar alguma coisa ao frigorífico».

Desde que atingiu a maioridade, há três anos, a vida do David é passada em casa, o que provoca um «desgosto profundo» à mãe. «É uma lacuna a lei não permitir a estes meninos continuarem na escola, para interagirem terem estímulos». Ao abandono da escola seguiu-se uma depressão. O David começou a ficar prostrado, deixou a cadeira de rodas com a qual habitualmente percorre a casa, na Parede, concelho de Cascais, e foi necessário recorrer a uma cama articulada com protecção antiescaras. Foi uma das muitas fases complicadas que a família atravessou ao longo destes anos.



Ana Paula Gomes, socióloga, e o marido, engenheiro técnico agrário, desempenham o papel de cuidadores informais do filho, auxiliados por uma pessoa que cuida do David enquanto estão a trabalhar. Com excepção do horário de trabalho, todo o tempo disponível é passado a cuidar do David. A vida social resume-se a acompanhar o filho a actividades como a hidroterapia, as aulas de surf adaptado ou algum evento organizado pela Pais em Rede ou a Associação Salvador, organizações não governamentais que apoiam pessoas com deficiência e respectivas famílias. Tiram férias separados, para rentabilizarem o apoio que cada um pode prestar ao filho.

Nestas circunstâncias, o trabalho torna-se a actividade mais gratificante. «A minha ligação à sociedade passou a fazer-se pela via do trabalho, senão o isolamento era completo». Ana Paula Gomes trabalha no Ministério da Justiça. Nunca meteu um atestado médico. Conta com a compreensão do seu serviço, que a deixa gerir o horário com flexibilidade. Quando precisa acompanhar o David a uma das muitas consultas de especialidade de que ele precisa tem de tirar toda a manhã ou toda a tarde. Para compensar, noutros dias entra ao trabalho antes das 8 horas da manhã ou sai mais tarde no final do dia. Mas é preciso também levá-lo à fisiatria, à hidroterapia, quando possível às aulas de vela. Gostaria que o filho usufruísse de outras actividades, mas não tem tempo. A pressão seria menor se o David não estivesse sempre em casa, se ainda estivesse na escola ou pudesse frequentar um centro de actividades ocupacionais, nos quais não há vagas.

«Os cuidadores deveriam ter flexibilidade de horário, para além do estipulado na lei, que não responde às necessidades reais. Eu tenho, mas é por boa vontade. Sentimos sempre que nos estão a fazer um favor». Ana Paula defende o aumento da flexibilidade de horário quando os filhos deixam de poder frequentar a escola e passam a exigir mais tempo aos pais. Também é importante garantir a flexibilização da reforma, «sem penalizar o cuidador informal».

Em Portugal, os cuidadores informais não dispõem de direitos e deveres definidos, o que os deixa vulneráveis à boa vontade de quem os rodeia, em especial das entidades patronais. «No nosso país tudo se faz com boa vontade, mas estamos longe de seguir as boas práticas comprovadas internacionalmente. Começa logo pela falta de articulação entre os serviços sociais, de saúde e de educação», acusa Ana Paula Gomes.


Josefina Bascoy frequenta o Centro de Dia da Associação Alzheimer Portugal, em Pombal

A história de Maria do Rosário Fuentes ilustra bem esta realidade. Há oito anos que cuida da mãe, Josefina Bascoy, 88 anos, portadora de Alzheimer. Os primeiros sintomas surgiram em 2010, a doença só foi diagnosticada cinco anos depois. Actualmente, Josefina frequenta o Centro de Dia da Associação Alzheimer Portugal, em Pombal, de segunda a sexta-feira. Maria do Rosário quer manter a mãe consigo enquanto ela reconhecer a família e conseguir subir os dois andares do prédio sem elevador onde moram. «A minha mãe era uma mulher "furacão", uma supermãe e uma superavó, e eu quero retribuir o que fez por mim e pelos meus filhos», resume.

Até agora tem conseguido, graças à boa vontade dos que a rodeiam. A começar pelo restaurante onde trabalha há 28 anos, propriedade de pessoas da família, que lhe permitem ajustar os horários aos do Centro de Dia, e a quem está «eternamente grata». Conta também com o filho de 33 anos, que acompanha a avó aos domingos e feriados, e com uma pessoa amiga, de confiança, que toma conta aos sábados. «Nunca encontrei nenhuma porta fechada. Nunca me levantaram problemas se preciso de faltar para ir com a minha mãe a uma consulta».


Maria do Rosário Fuentes aprendeu, sozinha, a lidar com a doença de Alzheimer da mãe

Tal como Ana Paula Gomes, Maria do Rosário dedica todo o tempo livre à mãe, que «está em primeiro lugar, como se fosse uma terceira filha». Deixou de sair de Pombal, porque dormir fora de casa deixa a mãe ansiosa. Aprendeu, sozinha, a lidar com a doença, desde manter a porta da rua fechada para que a mãe não escape sem avisar, até ter o gás desligado, para evitar acidentes. Aprendeu a não contrariar a mãe nos momentos de falta de lucidez, prevenindo assim alterações de humor próprias da doença. Quando ela lhe pede para visitar a sua própria mãe, falecida há mais de 30 anos, responde: «Vamos amanhã, mãe».

A gratificação de ver a mãe bem tratada não elimina o desgaste. Há cerca de um ano foi-se abaixo, numa altura em que a mãe atravessou um período de muita agressividade e não a deixava dormir. Contou com o apoio do neurologista, dos técnicos do Centro Alzheimer Portugal e dos amigos. Graças a eles, não chegou a «precisar de medicação». Nunca recorreu a qualquer apoio psicológico.

Os cuidadores informais estão normalmente sujeitos a grande desgaste físico e emocional, e a lei portuguesa não contempla medidas que lhes garantam momentos de descanso e apoio psicológico. Ana Paula Gomes confessa sentir-se «à beira de um esgotamento». «Não sei até quando conseguirei manter a minha saúde mental. Acho que isto acontece a muitos cuidadores». Em Janeiro passado sofreu um acidente vascular cerebral e não voltou a ser a mesma. Nas consultas de diabetes, a enfermeira faz-lhe ver que, para cuidar do David, primeiro tem de cuidar de si. Isso não a impede de continuar a adiar exames médicos que deveria ter feito há mais de seis meses. «Deixo a minha saúde de parte, porque o tempo não chega. Em primeiro lugar está ele, é assim».

Os cuidadores informais também enfrentam custos acrescidos, o que faz disparar o risco de pobreza. Maria do Rosário estima um custo mensal de 500 euros, entre a mensalidade do Centro de Dia e os medicamentos. Só em fisioterapia, a família de Ana Paula Gomes já chegou a gastar mais de 500 euros por mês, além do custo das aulas bissemanais de psicoterapia em casa, da mensalidade com a senhora que diariamente cuida do David quando os pais têm de estar ausentes, da medicação e das cadeiras de rodas. 

Os apoios disponíveis são poucos e para obtê-los é preciso vencer complicados trâmites burocráticos. «O processo de ajudas técnicas é obscuro e difícil» conta Ana Paula, relembrando o processo constituído na Segurança Social, que demorou mais de um ano a resolver. «Tivemos de ser nós a pedir os orçamentos dos equipamentos, para conseguir a respectiva comparticipação. É um processo que cansa ainda mais a família».



PRESIDENTE NÃO DEIXA CAIR ESTATUTO DO CUIDADOR INFORMAL

«A criação de um Estatuto para o Cuidador Informal é uma causa que é nacional. É uma causa que reúne o apoio de todos os partidos. É uma causa que o Presidente da República sempre defendeu e continuará a defender, até que seja uma realidade», informou a Presidência da República numa mensagem oficial, no dia 5 de Novembro.



Marcelo Rebelo de Sousa tem insistido publicamente no assunto, antes e depois da proposta de Lei de Bases da Saúde (LBS) do Governo omitir essa consagração. A ministra da Saúde justificou que não faria sentido esse detalhe na LBS, por ser uma matéria que carece da intervenção de outros sectores. Marta Temido garantiu ainda que «não está minimamente hipotecada a intenção » de garantir por via legislativa os direitos dos cuidadores informais, designadamente quanto a aspectos fiscais, apoios sociais e direito ao descanso.