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6 outubro 2022
Texto de Sandra Costa Texto de Sandra Costa Fotografia de Mário Pereira Fotografia de Mário Pereira Vídeo de João Lopes Vídeo de João Lopes

Uma família rara

​​​​​​​​​Perante a doença de Joana, os pais criaram uma associação e a irmã escreveu um livro.

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​A família senta-se em roda, no chão da sala, Joana entre as pernas da mãe. António, o pai, lança lenços de cor para atrair a atenção da filha. Sofia, a irmã, chama-a carinhosamente. Por vezes, “Ju” olha fixamente os rostos, emite sons que parecem pequenas gargalhadas. A doença rara, Sanfilippo, que lhe foi diagnosticada aos seis anos, levou-lhe a capacidade de falar há cerca de um ano, mas Joana expressa as emoções através do olhar, procura a mão da irmã, dirige-se à cozinha quando tem fome. A motricidade quase não foi afetada: Joana anda, corre, mexe em tudo sem dificuldade. Adora música e gosta de dançar, ver televisão, ir à piscina e à praia, passear na Natureza, estar de férias. «E gosta da família, que reconhece muito bem», diz a mãe, com um sorriso.

A síndrome de Sanfilippo é conhecida como uma forma infantil de Alzheimer, que tem origem genética e resulta de ambos os pais serem portadores de mutações no mesmo gene. «É uma espécie de lotaria invertida, visto que temos milhões de genes», ironiza Raquel Marques. Os 12 anos de convívio com o diagnóstico da filha permitem-lhe falar da doença com uma tranquilidade surpreendente.

Joana nasceu a 29 de fevereiro de 2004, fruto de uma gravidez desejada e tranquila. O dia, também ele incomum, assinala as doenças raras, mas até aos três anos a vida da criança decorreu sem sobressaltos. A partir daí, surgiram sintomas «pouco óbvios», como hiperatividade, falta de concentração, discurso pouco claro, diarreias frequentes, distúrbios do sono, infeções nos ouvidos e na garganta.


As terapias são importantíssimas para prolongar a autonomia das crianças e manter um quotidiano familiar «mais ou menos comum»

A terapia da fala mostrou-se infrutífera, as consultas de especialidade emperravam no diagnóstico inicial, de perturbação de hiperatividade e défice de atenção (PHDA), embora não explicasse todos os sintomas. Passaram três anos até que um experiente neuropediatra mencionou à família, pela primeira vez, o nome do médico norte-americano que, em 1963, descreveu esta doença metabólica, em que a falta de uma enzima leva à acumulação de compostos, que se tornam tóxicos e causam danos progressivos no sistema nervoso central.

Quando receberam o diagnóstico, a filha mais nova, Sofia, já tinha mais de dois anos. Viveram em angústia até as análises confirmarem que, desta vez, a sorte estava do seu lado. Nem sempre é assim, garante Raquel. «Existem famílias com dois e três filhos com Sanfilippo, porque não receberam o diagnóstico a tempo de fazer escolhas informadas».
No início, Raquel e António não se aperceberam do tremor de terra que lhes entrou pela vida. A informação disponível era escassa, quase só artigos científicos não traduzidos para português. Começaram por procurar respostas, alguma coisa havia de poder fazer-se. Foram aos EUA, em busca de centros especializados na doença. Foi aí que tomaram consciência do «prognóstico terrível» desta doença degenerativa, para a qual ainda não há tratamento ou cura, não porque seja complexa, mas porque as doenças raras não atraem investimento.

Em 2012, os pais de Joana criaram a Associação Sanfilippo Portugal. «A nossa forma de reagir foi fazer alguma coisa para ajudar outras pessoas»

Ter o diagnóstico permitiu-lhes, pelo menos, perceber que o problema da filha era a doença e não eventuais erros na educação, que «se ela não tinha os esfíncteres treinados, não era porque não estávamos a insistir como deve ser». Fizeram outra descoberta, esta promissora. Perceberam que, nas doenças raras, o desenvolvimento de terapêuticas começa com grupos de pais, unidos em associações, que angariam fundos junto da família e dos amigos, para financiar a investigação. Raquel tornou-se vice-presidente de uma destas associações norte-americanas. Até que, em 2012, ela e António criaram a Associação Sanfilippo Portugal. «A nossa forma de reagir foi fazer alguma coisa para ajudar outras pessoas a não passarem pelo que nós passamos», resume Raquel.

A associação acolhe as famílias quando recebem o diagnóstico e fornece informação atualizada, em português. Neste momento, tem contacto direto com 13. Raquel estima que existam em Portugal 30 pessoas com esta síndrome. Comparticipa terapias, importantíssimas para prolongar a autonomia das crianças. «Comerem sozinhos, conseguirem levantar-se e andar ou saberem comportar-se socialmente faz toda a diferença no quotidiano familiar». Joana deixou a terapia da fala, mas continua com sessões de psicomotricidade e hidroterapia, e na escola faz um pouco de terapia ocupacional. A mãe não tem dúvidas de que a autonomia que Joana mantém aos 18 anos contribui para a vida familiar «mais ou menos comum, apesar da diferença e da estranheza». O apoio à investigação, em parceria com associações de outros países, aumenta a esperança de encontrar a cura. «Se houvesse mais dinheiro investido, não tenho quaisquer dúvidas» de que seria possível, assegura a presidente da Sanfilippo Portugal.

 Sofia tem 14 anos, menos quatro do que a irmã. Sempre mostrou uma maturidade invulgar para a idade​

Muitos pais participam em conferências científicas da especialidade, onde partilham vivências com a mesma realidade e criam laços de amizade. Raquel surpreende-se como estes miúdos parecem irmãos, com comportame​ntos iguais e feições similares. As suas realidades, tão raras, tornam-se familiares, e isso dá força. «Há famílias que lidam com dois filhos assim e, à sua maneira, fartam-se de rir. Faz-nos pensar que não estamos sozinhos».

A vontade que sempre viu nos pais, de fazer coisas para fintar a Sanfilippo, contagiou Sofia. Cresceu com uma irmã «diferente», envolvida nos projetos, eventos e caminhadas da associação. Convive com famílias de outros países, com meni​nos iguais à irmã, vendo as pessoas mobilizadas em torno da causa. «Claro que isto muda a vida da família», reconhece a mãe. Sofia tem 14 anos, a irmã 18, mas os papéis foram há muito invertidos. Ainda pequenita, quando lhes perguntavam as idades, respondia: «A Joana é mais velha, mas eu sou mais velha na idade mental». Sempre mostrou uma maturidade invulgar para a idade e, além de companheira de brincadeiras, é mais​​ um par de olhos atentos às necessidades da irmã.


O livro apoia a angariação de fundos da associação portuguesa e já está a ajudar as associações Sanfilippo da França e do Brasil 

Para Sofia, «é normal lidar com a diferença», mas o mesmo não acontece com quem as rodeia. Isso levou-a, durante a pandemia, a escrever um livro sobre a sua relação com Joana. «Há um olhar de irmã que é diferente», explica. No livro conta como se divertem, à maneira delas. «Damos voltas à casa e acabamos no jardim, jogamos à apanhada, ficamos a ver TV. Temos uma conexão forte».

O projeto começou timidamente, com o apoio dos professores da Escola de Música e Artes, na Charneca da Caparica, onde Sofia tem aulas de piano. A mãe só soube quando a chamaram para ver o resultado, já com as ilustrações, oferecidas por Mafalda Mota. «Adorei! Disse logo que tínhamos de editar e fazer do livro um projeto solidário da associação». Ao livro juntaram uma música, cantada pela artista Anabela. O livro foi bem recebido, cederam os direitos às associações Sanfilippo da França e do Brasil, onde serve também de apoio à angariação de fundos. «Não pensámos que ia crescer desta maneira, mas o trabalho colaborativo, às vezes, dá nisto», alegra-se Raquel.


 


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