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3 setembro 2021
Texto de Sandra Costa Texto de Sandra Costa Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

Um oásis no Alentejo

​​​​​A albufeira define o carácter de Montargil.​

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Ainda o sol nascente reflecte na água um trilho de luz e já a pescadora, empoleirada no barco branco, recolhe as redes lançadas na véspera. A tapeçaria de juncos que se eleva da berma, sobrevoada por nuvens de mosquitos, cobre-se de tons dourados. Cheira a feno e a fresco. Calaram-se os mochos há instantes, é a vez dos galos celebrarem o dia. De quando em quando um grasnar de pato, um latido de cão, um grito de águia. Uma cegonha plana sobre a água, onde brilhos de prata desvendam os saltos dos peixes. Na areia, pegadas e caganitas de ovelhas – há muitas por aqui, javalis também. O calor ainda não aperta, mas promete. Pelas nove horas já o corpo se protege nas sombras, às 14h pede clemência e sonha com a brisa nocturna.  


Gracinda Oliveira apanhou o gosto pela pesca, negócio iniciado pelo sogro

Das redes Gracinda Oliveira tira duas dezenas de carpas, barbos e achigãs, que depois venderá nos restaurantes e mercados. Nas águas plácidas da albufeira de Montargil também há percas e peixes-gato. Lúcios e bogas deixaram de aparecer. O comércio é fraco, o peixe do rio não faz parte da tradição gastronómica, a pesca faz-se por desporto. «Vou-me ajeitando. Se não gostasse não fazia, que isto não dá muito», solta Gracinda. O negócio da pesca vem do sogro, ela só começou a lançar as redes quando o marido deixou de ter tempo, ocupado na apicultura e nas montarias, que trazem muitos caçadores à região. Além dos javalis, a caça faz-se aos patos e pombos.  


José Nunes Oliveira, conhecido como Zé Lacrau, com o ajudante Martim numa das suas colmeias de onde extrai o mel para vender

É também pelo fresco que José Nunes Oliveira, conhecido como Zé Lacrau, sai de casa para tirar o mel. Vai com ele o Martim, amigo da família que passa as férias de Verão na vila. Era ainda um gaiato quando começou a acompanhar Zé Lacrau nestas andanças, hoje já quase não tem medo das abelhas. É uma excelente ajuda, confirma. «Não sabe tudo, mas sabe muito». Equipados com grossos fatos brancos e redes na cabeça, são cercados por centenas de abelhas agitadas quando lhes tiram o mel. Este é um dos 70 apiários que José Nunes Oliveira tem espalhados por Montargil, mil colmeias que rendem dez mil quilogramas de mel por ano, quase todo de rosmaninho. Em casa, ele e Gracinda tratam da extracção e do embalamento, com a marca José Nunes Oliveira.  


A enfermeira Hélia Santos move mundos e fundos para dar a conhecer Montargil

No ar sente-se um forte cheiro a resina. Brotam pinheiros e sobreiros da terra arenosa dos dois lados da Estrada Nacional 2, que acompanha a albufeira durante quilómetros, entre Ponte de Sor e Mora, a vila onde um fluviário criado em 2007 divulga a fauna dos rios. Alguns sobreiros trazem a pele vermelha da cortiça recentemente tirada: a campanha de 2021 fez-se entre Junho e Agosto. É uma importante fonte de receita da região, tal como a pinha e a azeitona, confirma Hélia Santos. A enfermeira move mundos para dar a conhecer as belezas da terra onde vive há 25 anos. Nas ruas de Montargil fala com toda a gente e nem as muitas horas de trabalho diário no centro de saúde e no lar da Misericórdia lhe tiram a energia.  

Os 14 quilómetros da albufeira criada com a construção da barragem, em 1958, para garantir a rega dos campos agrícolas, é um oásis nos dias escaldantes do Verão. À sexta-feira há cortejos de carros a entrar na vila, com barcos e motas de água nos atrelados. Muita gente tem vivendas de segunda habitação nas margens da albufeira. «No Verão não sabemos se estamos nesta vila pacata se no Algarve», brinca Hélia Santos. Nas águas cruzam-se lanchas, motas de água, canoas e, cada vez mais, barcos à vela, sobretudo desde que o Clube de Vela e Canoagem veio aproximar a comunidade da albufeira. Antes da pandemia, todos os anos 250 estudantes de Montargil e Ponte de Sor frequentavam cursos de vela e muitos adultos praticam vela lúdica aos fins-de-semana. «Até ao fim do ano queremos lançar a canoagem», conta a directora do clube, que pertence a uma «família de velejadores» e conhece Montargil desde os anos 80.  

​​A madeirense Gi Lourenço partilha a paixão do marido pelos cavalos. Gerem a Coudelaria Dias, que está na família de Nuno há 40 anos

O final da tarde, quando o calor abranda, é a hora certa para passear a cavalo junto à albufeira. Não é precisa experiência e os chinelos de praia são aceites como parte da indumentária. Em menos de cinco minutos, Gi Lourenço passa as instruções básicas aos cavaleiros com uma simpatia desarmante. A Íris e a Estrela arrancam em passo lento pela estrada de terra, seguidas pela Ginja, a Vodka e a Bibá. À chegada à albufeira, as éguas pastam, refrescam-se na água. «É para ser um prazer», garante Gi, que deixa escapar por cada poro o amor aos animais. A energia estonteante da madeirense contrasta com a calma do marido alentejano, a paixão pelos cavalos é comum. A Coudelaria Dias vem da família de Nuno, que há 40 anos cria e ensina cavalos. São 30 animais espalhados por três herdades.  

Em Foros de Arrão, a 12 quilómetros, vale a pena visitar o moinho de vento que começou a laborar em 1932 e é a prova viva dos tempos em que os campos se vestiam de espigas de trigo, milho e centeio. Vestida a rigor, a filha do último moleiro daquele moinho desfia as estórias do avô que ali viveu. Teve 12 filhos. A filha recorda os relatos do avô sobre os esquemas dos gaiatos para roubar no peso da farinha e ganhar uns tostões para comprar rebuçados de mel, caríssimos na época.  


Gracinda Oliveira retira da panela as cabeças de peixe que deram gosto ao caldo

Na cozinha da vivenda onde vive com o marido, Gracinda Oliveira prepara a sopa de peixe. A receita é uma invenção sua. Num alguidar coloca as cabeças de peixe que vão dar sabor ao caldo, noutro as postas finas do peixe a fritar, temperado com orégãos. As ovas vão engrossar o caldo, o poejo dar-lhe sabor. O almoço é servido no Monte da Raposinha, uma herdade familiar que começou a fazer vinho por hobby e hoje produz, por ano, 100 mil garrafas de tinto, branco e algum rosê, em 15 hectares de terra. O nome é uma homenagem à mãe de João Nuno Ataíde, o proprietário, a quem chamavam “raposinha”. Ele, licenciado em Direito, que «em boa hora abandonou», e a mulher, Paula, enóloga de profissão, meteram mãos ao projecto de «fazer vinhos com o carimbo de Montargil». O micro-clima da barragem confere frescura ao vinho, explica Nuno. Neste Verão, o Monte da Raposinha deu os primeiros passos no enoturismo.  

Na sombra do amplo telheiro de madeira, prepara-se a mesa para dez convivas. Em frente, as duas casas dedicadas aos hóspedes, com portas vermelhas e barra amarela, à esquerda, uma azinheira enorme e a piscina com vista para o vale que já foi um arrozal. À volta da grande mesa de pedra, os comensais elogiam a sopa de peixe de Gracinda e refrescam-se com os brancos e rosês que Nuno distribui generosamente. Uva, a cadela do casal, desfalece de calor no chão de tijoleira.  

A conversa flui, da muito ansiada praia fluvial à afluência de gente a Montargil durante a pandemia e à forma de apanhar lampreia. «Que calor!», solta alguém. É sufocante, mais de 40 graus, o suor escorre pelas testas, as moscas sempre chatas colam-se aos corpos molhados. Paula traz ao colo Zequinha, que acabou de acordar de uma sesta curta. Sentado nas pernas do pai, o bebé de seis meses prende o olhar na sua voz grossa, tem a alegria pura nos gestos, no riso, no olhar vivíssimo. Lambe com a boca toda o exterior do copo, atrás do movimento do líquido rosa que, quem sabe, será um dia o seu modo de vida.
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