Farmácia Higiene - Verdelho, Póvoa de Santarém
Seis anos depois do encerramento do centro de saúde, uma farmácia no Verdelho é uma improbabilidade estatística. Para quem tem carro, sobram duas extensões de saúde, com atendimento em dias salteados. Na Póvoa de Santarém, às terças e sextas-feiras de manhã e quintas-feiras da parte de tarde. Em Achete, às quartas de manhã e nas tardes de segunda a quinta-feira. Para se orientarem, os doentes levam para casa um horário, como antigamente as crianças da escola. O melhor é telefonarem antes de se fazerem à estrada, porque há muita falta de médicos e algumas consultas são desmarcadas.
O Verdelho é terreno agrícola atravessado por uma estrada municipal. Nas bermas, um comboio de casinhas portuguesas de azulejos anuncia que aqui ainda vive gente. A viúva Alzira mora em frente à farmácia. Queixa-se da epilepsia que lhe apareceu ao caminho, do vento frio a bater-lhe na cara e das saudades do marido. Morreu-lhe «já lá vão seis anos». Anda com o retrato dele no porta-chaves e o saco de medicamentos sempre à mão, «ai Jesus, isso não pode falhar».
Alzira Guerra, epiléptica, vive sozinha. Fechado o centro de saúde, espera não ficar sem a farmácia
Os doentes crónicos caem muitas vezes na farmácia para renovar a medicação sem receita médica. A directora- técnica já se habituou a aliviar as regras para não estrangular a saúde das pessoas. «Tentamos que não lhes falte medicação nenhuma. Fazemos vendas suspensas, o que não se deve fazer, mas pronto», confessa Sónia Nobre. Como pensões agrícolas não chegam para depositar a parte comparticipada pelo SNS, a farmácia assume o risco. «O problema é que, para obterem uma receita médica, os doentes estão uma semana à espera, ou mais», descreve António Brás, 56 anos, técnico de farmácia e proprietário.
O pai, farmacêutico, passou-lhe o estabelecimento e ensinamentos práticos, sobre a profissão e o negócio, que davam para dois livros de instruções. Ele veio para o Verdelho aos 18 anos e agarrou-se logo ao balcão. Hoje, ainda faz de tudo, mas especializou-se na contabilidade e em fazer amizades. «A farmácia só sobrevive graças aos utentes que gostam de nós. Temos clientes de Lisboa que vêm cá ao fim-de-semana aviar as receitas».
— Ó careca! Ó careca! Já tens aí a encomenda?
Um carrito pequeno, daqueles que só requerem carta de condução para motociclos, pára à frente da farmácia. Joaquim Santos, 78 anos, e Maria Rosa, 75, só de vidros abertos cabem lá dentro. A Farmácia Higiene não tem Farmadrive mas faz atendimentos do outro lado da estrada. O homem fica ao volante. Ela só sai do carro para a fotografia. Um pouco corado, mas muito contente, o técnico de farmácia leva um medicamento para a asma e alivia a bata para receber dois beijos e um piropo da mulher.
Maria Rosa e Joaquim Santos param o carro à porta e gritam pelo «careca», para que lhes traga os medicamentos
— O careca hoje está tão bonito!
Maria Rosa ganhou a vida a cortar eucaliptos. Abateu tantos que ganhou no corpo a robustez das árvores. Pariu cinco filhos em casa, o que lhe deu um mestrado prático em Economia. Ainda hoje poupa nas falas e corta a direito os argumentos:
— Venho sempre aqui porque ‘semos’ bem tratados e porque fazem fiado.
«É um risco, mas se não fiarmos perdemos os clientes », expõe António Brás. Esta tradição antiga da Farmácia Higiene tornou-se um problema sério com a crise económica, que faz uma pescadinha de rabo na boca com a crise de valores.
António Brás trabalha de segunda a sábado, das oito da manhã às nove da noite. «Estou sempre disponível»
«Antigamente, todos pagavam sempre ao mês e tinham as continhas mais ou menos em dia. Agora não é bem assim», lamenta Sónia Nobre. Tirou o curso em Coimbra, casou e veio para aqui há 16 anos, mal concluiu o estágio. A liberalização do sector começou pouco depois. Os cortes e as medidas de austeridade vieram a seguir. «Esta crise já vai muito longa! Pensava que a crise ia durar menos tempo, mas está a demorar a sair», desabafa Clarisse Brás, ajudante de farmácia e mulher do proprietário. Os ‘livros de instruções’ do fundador começaram a falhar pelo lado do negócio. Em 2015, soaram as campainhas de alarme. «Chegámos a ter em risco o fornecimento diário de medicação, por falta de pagamento aos fornecedores», confessa a directora-técnica.
Como uma família unida, Sónia, Clarisse e António arregaçaram as mangas para sobreviver. A facturação não permite contratar mais ninguém. «O desgraçado do patrão não tem horário», descreve a farmacêutica. António vive na farmácia de segunda a sábado, das oito da manhã às nove da noite. «Estou sempre disponível. Ainda agora me telefonou um cliente de Santarém e vou desenrascá-lo à hora de almoço. Nós vivemos do receituário, agradecemos a todos que venham cá». Aos domingos, o casal faz trabalho voluntário, a servir refeições domiciliárias a idosos, mas se for preciso abre a farmácia a um cliente aflito. Outro vizinho é Manuel Ferreira, 101 anos. Anda com andarilho devido a uma fractura do fémur, mas continua bom de cabeça. A farmácia está sempre aberta para as necessidades dele. O filho recusa aviar medicamentos noutro sítio. «São umas pessoas fantásticas. Quando é preciso vão lá a casa medir glicémias e com o aparelho de tensão», descreve António Meireles, reconhecido. Também Margarida Paulino, outra viúva, só em aqui buscar os medicamentos para a hipertensão, mesmo que vá a uma consulta em Santarém. Hoje só apareceu «porque precisava fazer um telefonema».
Manuel Ferreira, 101 anos, e o filho, António Meireles, 78, são clientes fiéis, para evitar que a farmácia feche
A Farmácia Higiene é um milagre económico porque a comunidade faz o que pode para evitar o encerramento. «Tudo o que eu posso fazer que me mantém viva e que justifica os locais de trabalho que existem eu tento continuar a fazer», resume Ana Viera. Esta mulher de olhos azuis irradia boa energia». Foi 42 anos educadora de infância, as lições dela são simples. «A farmácia é dos poucos pontos de apoio que restam à comunidade.
«A farmácia é um dos poucos pontos de apoio que nos restam», afirma Ana Vieira, atendida pela farmacêutica Sónia Nobre