Política de utilização de Cookies em Revista Saúda Este website utiliza cookies que asseguram funcionalidades para uma melhor navegação.
Ao continuar a navegar, está a concordar com a utilização de cookies e com os novos termos e condições de privacidade.
Aceitar
22 maio 2018
Texto de Vera Pimenta Texto de Vera Pimenta Fotografia de Pedro Faria Fotografia de Pedro Faria

Há 13 anos em risco

​​​​Nesta farmácia a crise enfrenta-se com um sorriso, porque o utente está sempre em primeiro lugar.

Tags

Farmácia Do Vale - Curral Das Freiras, Madeira

Cercado de enormes montanhas, num vale profundo no coração da Madeira, esconde-se o Curral das Freiras. Outrora refúgio de escravos e foragidos, o antigo Curral da Serra herdou o seu nome em 1566, quando serviu de esconderijo às freiras do Convento de Santa Clara durante o saque do Funchal por corsários franceses. 

Entre as casinhas pintadas de todas as cores e os prados verdejantes que, ao longe, lembram o cenário de um filme de fantasia, ergue-se a Farmácia do Vale. Pequena em tamanho, mas grande no serviço que presta todos os dias às cerca de 2.000 pessoas que ali vivem.


Num vale profundo no coração da Madeira esconde-se o Curral das Freiras

Tudo começou em 2002, por ocasião da abertura de um concurso para instalação de novas farmácias. Os oito anos de serviço da proprietária e directora-técnica valeram-lhe o Curral das Freiras – um desafio que encarou de bom-grado. «Mas esta história não é um conto de fadas», como bem lembra Ana Ornelas, de 47 anos. «Eu costumo dizer que sempre estive na crise. É que eu já não abri nesses tempos tão bons de que tanto se fala», plica. Dificuldades que se fizeram sentir, desde logo, na construção da farmácia, que exigiu um largo investimento por parte da proprietária.

Em 2005 abre a Farmácia do Vale. Um espaço humilde, de paredes brancas e grandes janelas que deixam admirar as paisagens lá fora. Para a população do Curral das Freiras, um serviço há muito esperado, que veio facilitar muito o quotidiano. 

Mas, numa freguesia com uma população maioritariamente idosa e com baixo poder de compra, a crise foi avassaladora. Para Ana Ornelas o pior ano foi 2012. Por um lado, a redução das margens, a introdução das margens regressivas e os horários de 55 horas que obrigavam à presença de dois farmacêuticos na farmácia. «Cativar as pessoas é complicado», explica a proprietária. E continua: «Eu dei-me muito bem com todos os farmacêuticos que trabalharam cá, mas todos eles saíram porque quiseram abraçar projectos mais aliciantes, mesmo gostando muito de estar nesta farmácia». Por outro lado, o aumento do desemprego, que obrigou à emigração. Menos crianças e cada vez mais idosos a viver sozinhos.  

Actualmente a Farmácia do Vale está em Regime de Excepção e assim continuará enquanto não atingir os limites mínimos de facturação. E embora reconheça este avanço na legislação, Ana Ornelas considera que ainda há muitas falhas por combater: «Com este regime eu posso ter um horário diferente, mas as horas estão pré-determinadas. De que me vale ter uma hora de almoço longa se é a essa hora que a farmácia tem mais utentes?». 


A directora-técnica, Ana Ornelas, gosta que o atendimento seja sempre personalizado

«É difícil sobreviver num contexto destes», desabafa a proprietária, «mas quando se trata de defender a farmácia eu vou à luta e a minha equipa está comigo», remata. A estratégia passa por precaver problemas e controlar os custos fixos, sempre com o apoio dos três técnicos auxiliares que a têm acompanhado nos últimos anos. E, claro, o ingrediente mais importante: «É preciso acreditar no projecto. Nós trabalhamos todos os dias para oferecer aos nossos utentes o melhor, ao melhor preço».  

Quem entra na Farmácia do Vale é recebido com um sorriso e tratado pelo nome, numa relação marcada pela proximidade e pela cumplicidade. No caso dos utentes mais idosos, os farmacêuticos sabem até os medicamentos que tomam regularmente. O elevado nível de iliteracia implica uma maior dedicação e cuidado no atendimento: «temos que ter a certeza de que quando o utente sai daqui sabe o que vai tomar e como vai tomar», explica a directora-técnica, «precisamos de despender mais tempo, mas, em retorno, recebemos a confiança das pessoas». 

A pensar no conforto dos utentes que não sabem ler, a farmácia disponibiliza cartões de posologia com desenhos que representam as diferentes horas do dia. «Já aconteceu os utentes irem a uma farmácia de serviço, depois de saírem das urgências, e no dia seguinte virem cá pedir para colarmos os nossos autocolantes», comenta a técnica de farmácia Karina Ferreira, de 36 anos. Depois de 12 anos de serviço que «passaram a voar», não restam dúvidas: «O que eu gosto mais é do atendimento! De conversar com as pessoas e conhecer as histórias delas».


Igor Abreu, Fátima Santos, Ana Ornelas e Karina Ferreira. Esta equipa sabe de cor e salteado a medicação da maioria dos doentes

«Antigamente só havia uma pequena farmácia, tipo mercearia, que funcionava nesta rua», conta Isabel Camacho, utente assídua da Farmácia do Vale. Na altura, Isabel vivia a norte da freguesia, no Pico do Furão, e demorava uma hora a deslocar-se ao estabelecimento a pé. «Quase sempre encontrávamos a farmácia fechada e tínhamos de ir a casa da proprietária, a senhora Cesarina, que simpaticamente interrompia os seus afazeres para nos atender», recorda a bibliotecária de 45 anos, acrescentando que, nesse tempo, os medicamentos e produtos disponibilizados pela farmácia eram muito limitados. «Hoje há pessoas, principalmente as mais idosas, que vão à farmácia só para desabafar», remata, com um sorriso.

Maria Lucinda de Sousa, de 57 anos, vive no Curral das Freiras há 26. «Venho sempre cá», atira. Já conhece os farmacêuticos e gosta da forma como é tratada. «Ainda há um pedacinho saí daqui com um saco de medicamentos para o meu marido». «Isto é quase uma família!», interrompe o filho, Jonas Abreu, de 34 anos. Bombeiro profissional há 17 anos, desde há três anos que frequenta a farmácia mais do que nunca: «Venho cá levantar os leites e os soros para o meu filho». Um dos técnicos é também o amigo de infância com quem jogava à bola. «O povo do Curral é muito humilde», conta, e «as pessoas aqui dão muito valor aos bombeiros, à farmácia e ao centro de saúde, porque são serviços que fazem falta». Recorda também que há muita gente sem transporte ou com dificuldades de mobilidade, que não consegue deslocar- se até ao Funchal. «Aqui toda a gente se conhece. Olhe, esta senhora é a dona Maria. Foi contínua na minha escola primária.», afirma, enquanto abraça uma utente que acaba de entrar. 


Para Maria Lucinda de Sousa e o filho, Jonas Abreu, a Farmácia do Vale é como uma família

«É por isto que o Curral é um lugar maravilhoso para se trabalhar», desabafa Ana Ornelas. «Eu digo várias vezes aos meus colegas: “Sabem porque é que a nossa bata é branca?”» – a equipa em redor sorri – «Porque é imaculada. Nós estamos cá para servir». E o utente, esse, está sempre em primeiro lugar. É assim há 13 anos.

​​
 

Notícias relacionadas