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8 fevereiro 2019
Texto de Sónia Balasteiro Texto de Sónia Balasteiro Ilustração de Carlos Ribeiro Ilustração de Carlos Ribeiro

«Trocar seringas salvou-me»

​​​​​​Maria sobreviveu graças ao programa criado por Odette Ferreira.​

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Maria, nome fictício, chega, maquilhada e bem-disposta, ao Centro de Atendimento a Toxicodependentes (CAT) da Covilhã. Pede desculpa pelo atraso de cinco minutos, enquanto tira o casaco molhado pela chuva fininha que não pára de cair na rua, a fazer o frio vindo da Serra da Estrela ainda mais frio. Passa os dedos pelos cabelos lisos, a tentar enxugá-los, e tira os lenços de papel. «Ando adoentada», explica, ao sentar-se.

Aos 38 anos, é uma mulher desenvolta, de riso fácil e voz meiga, com muitos sonhos a cumprir: terminar o curso na área da saúde na universidade, viajar, e o mais importante de todos: ajudar toxicodependentes a recuperar as suas vidas. «Se eu fui capaz, eles também são», assegura, convicta. Há 20 anos, a «outra Maria, a do uso», dificilmente adivinharia o caminho a percorrer. «Era capaz de fazer muitas coisas que vão contra os valores da Maria de hoje em dia», diz ela, há oito anos em recuperação.

As drogas entraram cedo na sua vida. Ainda no liceu, começou a usar álcool e as primeiras drogas, «as ganzas». «Depois, comecei a ir a festas, veio o ecstasy e "os cogumelos". Tudo o que havia». «Trepei muito rápido», admite.

Em 1999, tinha ela 19 anos, começou a usar heroína. «Eu vivia para aquilo, 24 sobre 24 horas. Larguei os estudos, andei a viver na rua… fiz das drogas o meu modo de vida. Deixei de estar em casa porque o uso não era conciliável com os valores que me incutiram». Dois anos depois, no Natal de 2001, injectou heroína pela primeira vez. Não consegue evitar as lágrimas ao recordar o motivo: «Foi no dia em que o meu pai morreu». Alcoólico, o progenitor abandonara a família tinha Maria apenas um ano e meio. A última vez que o viu, era uma menina de seis anos.

Quando o progenitor morreu, pediu ao companheiro: «Hoje preciso de uma coisa diferente». «Estava com uma dor imensa, precisava de uma coisa nova… E a droga injectada é muito mais forte», recorda.

Foi o início da queda num abismo cada vez maior. Seis anos depois, estava a injectar também cocaína nas ruas de Coimbra, a cidade onde crescera, onde praticara voleibol como federada, natação e outros desportos de equipa. E onde entrara na universidade com uma média excelente em Desporto. Três anos a chumbar consecutivamente puseram a família em alerta. Não continuariam a pagar-lhe as propinas.

Nesses tempos, passava os dias no bairro e no Terreiro da Erva, zonas de grande consumo em Coimbra. Trocava as seringas na equipa de rua Reduz, da Cáritas Diocesana, e nas farmácias da cidade. «Na primeira vez em que ia, tinha de explicar o que queria. Depois, até já traziam o recipiente para colocar as usadas. Era muito tranquilo».

Rui Lino, assistente social no CAT da Covilhã, iniciou o seu percurso profissional precisamente no Terreiro da Erva, na Reduz. Conhece Maria desde então. «O objectivo principal do Programa Troca de Seringas (PTS) é trocar seringas para evitar a partilha de material, o contágio, mas essa está longe de ser a única vantagem», refere o técnico.

O projecto iniciado em 1983 pela farmacêutica Odette Ferreira permite resgatar muitos jovens ao mundo da droga, ao «promover o contacto de uma estrutura de saúde com aquelas pessoas que muitas vezes estão desligadas de todos os serviços». O facto de os toxicodependentes passarem a frequentar uma farmácia, ou a relacionarem-se com uma equipa de rua para trocar seringas, abre uma grande janela de oportunidade à saúde pública. «Esse contacto vai sendo desenvolvido até conseguirmos inscrever a pessoa, ajudá-la a aderir a um tratamento e mais tarde encaminhá-la para uma comunidade terapêutica», descreve Rui Lino. O PTS possibilita «esse trabalho fundamental de motivação e restabelecimento das redes de contacto dos indivíduos».

Maria, que hoje está «fantástica», é um caso exemplar dessa conquista de confiança e integração passo a passo. Em 2010, foi para uma comunidade terapêutica, na qual conheceu o programa de 12 passos do Modelo Minnesota e os Narcóticos Anónimos. Desde então, «fez um percurso notável», elogia o assistente social.


Maria chegou a cair na rua. Hoje vive para mostrar aos outros que «há vida depois da droga»

No internamento, tomou consciência de que tinha «uma doença, a adição». Depois, decidiu reconstruir a sua vida na Covilhã, escolha muito influenciada pela proximidade aos profissionais do CAT que a acompanham. «Tenho aqui uma equipa cinco estrelas. Eles são bons seres humanos e bons técnicos. Estou muito bem entregue», afiança.

Hoje, a ex-toxicodependente tem um «namorado impecável» e uma vida estruturada. Para ela, o PTS foi decisivo. Ciente dos riscos, nunca partilhou seringas com «pessoal da rua». Mas fê-lo com dois namorados. E essa partilha custou-lhe caro. «Das vezes que errei, tive consequências», lamenta, para logo acrescentar: «Basta uma vez». «Na primeira vez em que usei drogas injectáveis, apanhei hepatite C. O VIH foi com outro companheiro, em 2008».

Depois de infectada, Maria continuou a trocar as suas seringas nas farmácias e na equipa de rua. E isso, além de proteger a saúde de todos, salvou-lhe a vida. O facto de ter usado sempre matéria estéril protegeu-a do «risco de reinfecções, com um vírus VIH diferente, vírus causadores de outras doenças, como as hepatites, e vírus resistentes aos medicamentos», expõe o virologista José Vera, do Hospital do Barreiro. E protegeu os outros toxicodependentes, porque a partilha de sangue por via endovenosa mantém a transmissibilidade do VIH. «É sempre agradável encontrar alguém com consciência da necessidade de proteger a sua saúde e a saúde dos outros», elogia o médico.

A troca de seringas e agulhas permite evitar outras doenças incapacitantes, que podem ser mesmo mortais num período mais curto de tempo do que os vírus da sida ou da hepatite. «Estas doenças, transmitidas por várias bactérias, causam danos às válvulas cardíacas, podendo provocar derrames pericárdicos e tromboses», descreve Kamal Mansinho, infecciologista do Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade Nova de Lisboa. Essa infecções bacterianas potencialmente fatais «estão muitas vezes associadas a impurezas transmitidas através de seringas previamente utilizadas ou abandonadas». Por tudo isto, Kamal Mansinho adverte que «o PTS continua a ser fundamental para evitar infecções transmitidas através do sangue».

Maria sabe-o. Está curada da hepatite C e o VIH está indetectável há mais de seis meses. Ela não perdeu a esperança numa cura. «A ciência tem evoluído muito», comenta. Concilia estudos e trabalho. Encontra apoio na SERES, uma associação de mulheres com VIH, e nos Narcóticos Anónimos. A sua experiência de ida e volta ao inferno das drogas pode, afinal, ser muito valiosa. Ela já tem um projecto para o futuro: «Tirar pessoas da rua e mostrar-lhes que podem ter vida para além da droga».
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