Política de utilização de Cookies em Revista Saúda Este website utiliza cookies que asseguram funcionalidades para uma melhor navegação.
Ao continuar a navegar, está a concordar com a utilização de cookies e com os novos termos e condições de privacidade.
Aceitar
4 maio 2023
Texto de Sandra Costa Texto de Sandra Costa Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro Vídeo de Duarte Almeida Vídeo de Duarte Almeida

Terra branca

​​Revestida a cal, Serpa é terra de boa gente.

Tags
O aroma doce das queijadas de Serpa espalha-se por toda a Praça da República e faz crescer água na boca. A praça é branca, como Serpa inteira. Em frente ao restaurante O Alentejano, grandes chapéus abrigam esplanadas numa sombra fresca. Crianças saltitam entre a água que jorra de uma fonte no chão. Aqui e ali, uma voz em castelhano lembra a proximidade a Espanha. Rosal de la Frontera fica a 35 quilómetros, do outro lado da serra de Ficalho, que se avista do cimo da muralha do castelo. O calor já se faz sentir, ainda longe da canícula estival. Tudo é sossego.


Casas caiadas no centro histórico de Serpa. A cidade encontra-se bem conservada 

A enfermeira Teresa Pataca, nascida e crescida em Serpa, atravessa a praça até à loja de Ana Paixão, a responsável pelo perfume que inunda as ruas. Cumprimentam-se, aqui toda a gente se conhece. Ana formou-se em Engenharia do Ambiente, mas acabou por tomar nas mãos o negócio da avó, e fabrica queijadas, popias e bolos tradicionais. É um dos exemplos de empreendedorismo numa terra onde escasseiam as oportunidades e a economia assenta na agricultura intensiva, olival e amendoal a perder de vista, com pouco retorno para a região. «Degrada a biodiversidade, os terrenos e a saúde», indigna-se Teresa. Nunca quis deixar Serpa, mesmo tendo de deslocar-se diariamente a Beja, onde leciona Enfermagem, na Escola Superior de Saúde. «Serpa é a minha casa», diz com convicção. Gosta de tudo, da arquitetura às pessoas. “Serpa serpente, boa terra, melhor gente”, diz o ditado. Teresa confirma: «Ainda há relações de vizinhança, as pessoas acolhem e ajudam-se».

 A enfermeira Teresa Pataca no Museu do Relógio, único na Península Ibérica,​ e obra de um serpense que herdou três relógios​​

A casa de artesanato de Gertrudes Penúria, numa antiga carvoaria de tetos abobadados, parece uma gruta de Ali Babá, repleta de objetos de artesanato coloridos: cadeiras de fundo de bunho, sacos feitos de trapos (chamados talegos), cerâmica de vários feitios. Também se vende queijos de Serpa, feitos com leite cru e cardo, vinhos da região e doçaria típica. Gertrudes vem de uma família de artistas e artesãos. O pai era ferreiro forjador, a mãe modista, o irmão escultor, a filha é ceramista. Ela gosta de trabalhar tecidos, mostra com gosto os trajes que confecionou para o grupo coral: mondadeiras, ceifeiras, apanhadoras de azeitona, fatos domingueiros. O dela é de costureira.

Casa de artesanato de Gertrudes Penúria, uma autêntica gruta de Ali Babá, repleta de objetos de artesanat​o coloridos

Também cria fatos para o cortejo das festas em honra de Nossa Senhora de Guadalupe, padroeira de Serpa, que ali leva​ muitos visitantes e serpenses emigrados, na época da Páscoa. As casas são caiadas e as ruas enfeitadas para ver passar a imagem da santa que desce da ermida do século XVI, no alto de São Gens, até Serpa, no domingo de Páscoa. «É a maior festa da terra, não há quem não goste!», garante Teresa, que tem no nome Guadalupe. «Há muitas lupinhas em Serpa», diz. Enquanto acompanham a procissão, as pessoas cantam. «Em Serpa canta-se muito, temos uma ligação íntima com o cante alentejano». Na cidade há um museu dedicado a esta arte elevada pela UNESCO a Património Cultural Imaterial da Humanidade.


A Última Ceia” é a maior obra do escultor João Tejera, filho da terra, apesar de nascido espanhol há 82 anos

Da festa faz parte o cortejo histórico-etnográfico que homenageia o património, as tradições e os ofícios. Os carros são concebidos por João Tejera, outro filho da terra, apesar de nascido espanhol há 82 anos. Escultor e pintor autodidata, João é professor na academia sénior e «tem trabalhado muito para a comunidade», diz Teresa, que nele tem, acima de tudo, um amigo.


Igreja de Santa Maria e Torre do Relógio, ambas com vestígios árabes

No fresco primaveril, sabe bem subir ao Largo dos Santos Próculo e Hilarião, que funcionou como praça de jorna, onde, manhã cedo, vinham os capatazes escolher os trabalhadores para o dia na lavoura. Descobrir os vestígios árabes na Igreja de Santa Maria e na Torre do Relógio, à sombra de uma oliveira centenária na esplanada de uma das casas de artesanato de Gertrudes Penúria, com a porta de pedra em forma de ogiva. Ali ao lado, a Torre de Menagem destruída durante a Guerra da Sucessão Espanhola, no século XVIII, parece uma obra de arte, com a enorme pedra empoleirada na muralha. Serpa é uma terra antiga, «tão fértil e próspera que houve um período em que aqui se cunhava moeda», conta Rui Charraz, funcionário camarário. Ao cimo da muralha chega o odor intenso a flor de laranjeira. No bairro árabe, casas térreas brancas de cal acolhem trabalhadores asiáticos ao serviço das culturas intensivas. «Nos tempos da ditadura, as chaminés de escuta, abertas por dentro, eram usadas para ouvir as conversas», aponta Teresa.


Torre de Menagem destruída durante a Guerra da Sucessão Espanhola, no século XVIII

Integrado nas muralhas, entre a Porta de Beja e a Porta Nova, ergue-se, imponente, o Palácio Ficalho, do século XVII, uma das mais importantes casas senhoriais do Alentejo, propriedade da família Mello. Impressiona o aqueduto de 19 arcos mandado construir no século XVII para abastecer o palácio e, lá dentro, a arquitetura chã, com o pé direito de nove metros. O palácio marcou o Alentejo latifundiário, apoiou os liberais na Guerra Civil Portuguesa, recebeu Eça de Queiroz e Sophia de Mello Breyner, membros da família. A atual proprietária, Matilde Mello, recorda as brincadeiras com as bicicletas na tijoleira nua da sala e as histórias do trisavô de capote à lareira na casa impossível de aquecer no inverno. «Queremos que a casa permaneça na família, mas possa ser partilhada», diz Matilde. É ela quem conduz os visitantes, no projeto com as duas filhas que abre, finalmente, o palácio à comunidade. Ali já decorreram eventos, em breve será possível pernoitar.


Sala principal do Palácio Ficalho, de linhas simples e um impressionante pé direito de nove metros

No centro histórico de Serpa, num convento do século XVI, funciona o único Museu do Relógio da Península Ibérica, um dos poucos do mundo. Tudo começou com uma herança de três relógios de bolso que António Tavares d’Almeida transformou, por paixão, numa coleção de 2.900 relógios. O mais antigo é de 1630, o mais recente tem um mês. Há relógios de parede, mesa, bolso, pulso, anel, escrava, sol, azeite e vela, tudo relojoaria mecânica. O tique-taque incessante intercala com badaladas pontuais e a voz entusiasta de Eugénio Tavares d’Almeida. O diretor e conservador do museu herdou do pai o gosto pelo colecionismo e continua a resgatar «relógios com histórias diferenciadoras», como a do relojoeiro Roskopf, que deu origem ao termo depreciativo ainda hoje usado.


Moinho da Misericórdia, no leito do Guadiana. O rio faz parte da vida dos serpenses

O fim da tarde convida a uma pausa entre as sombras do jardim municipal ou na Cervejaria Lebrinha, onde se bebe «a melhor cerveja do país», como é conhecida. Não faltam restaurantes onde provar os pratos típicos, à base de pão: ensopado de borrego, migas com carne de porco, açorda, gaspacho, tomatada com ovos, caldo de cação e de peixe da ribeira. O Guadiana está ali a quatro quilómetros. O rio sempre fez parte da vida de quem lá mora, ainda hoje há quem vá «passar o dia ao rio». Ao Moinho da Misericórdia chega-se por um caminho de terra, à direita na estrada de São Brás. As searas estão polvilhadas de papoilas, tojo e esteva, a flora original da serra. Ovelhas pastam sob as azinheiras, uma manada de vacas inquieta-se à passagem do carro. A água corre ligeira, liberta frescura e calma. Esconde-se o sol numa bola de fogo, surge no céu uma lua muito cheia. Aqui e ali, montes alentejanos muito brancos pontuam a paisagem.
​​
 


Notícias relacionadas