Enquanto percorre os frescos salões, de pé direito altíssimo, Matilde Mello, a atual proprietária do Palácio Ficalho, aponta quadros e fotografias e conta histórias de familiares que marcaram a História de Portugal. Através das varandas abertas, entra na gigantesca sala de estar a luz e o calor do sol, o odor das laranjeiras em flor e o canto alegre da passarada.
A proprietária do Palácio Ficalho, Matilde Mello, iniciou com as filhas o projeto de abertura da casa à comunidade
Matilde é bisneta de Eça de Queiroz. Ele e Sophia de Mello Breyner, outro membro da família, são os nomes mais sonantes entre as muitas figuras públicas que passaram, ao longo dos séculos, pela enorme casa senhorial. O palácio, classificado como monumento nacional, foi construído na segunda metade do século XVII junto à muralha medieval e consolidou a presença da família Mello em Serpa, que vinha já do século XV. De senhores, passaram a condes e, depois, a marqueses de Ficalho.
Francisco de Mello Breyner, conde de Ficalho. Por baixo do quadro, imagem dos "Vencidos da Vida", a que pertenceu Eça de Queiroz, bisavô de Matilde Mello
São várias as figuras «apreciadas na casa», hoje habitada em permanência por Matilde Mello, e visitada regularmente pelas duas filhas e o neto. Matilde gosta especialmente da «força e coragem» da primeira duquesa de Ficalho, Eugénia Maurícia Tomásia de Almeida Portugal, que no século XVIII incitou os filhos a apoiar D. Pedro na Guerra Civil Portuguesa e chegou a estar cinco anos presa no Convento de Carnide. Pendurada na parede da sala, a bandeira azul e branca testemunha o apoio da família aos liberais. Outra mulher progressista foi Teresa Josefa de Mello Breyner, condessa do Vimieiro e amiga da condessa de Alorna. Defendeu, no século XVIII, princípios feministas e ganhou um prémio com a tragédia Osmía, que apresentou, sob pseudónimo, à Academia Real das Ciências.
Maria das Dores Eça de Queiroz de Mello, mãe de Matilde. Os pais dedicaram as vidas a reabilitar o palácio
Matilde Mello está satisfeita com a abertura da casa à comunidade, que teve início em 2021, num projeto conjunto com as filhas. O interesse crescente dos historiadores pelo palácio tem permitido desvendar histórias, até agora desconhecidas, sobre alguns familiares e muito continua por descobrir numa casa com 600 anos de história. A família já pôs à disposição dos historiadores o enorme arquivo da Casa Ficalho, que ocupa a parede de uma das salas, repleta de tomos grossíssimos, alguns encadernados a metal. Contêm correspondência, contratos e testamentos, os documentos da casa agrícola que alimentou gerações da família e deu trabalho a outras tantas de camponeses ocupados de sol a sol nas searas e na criação de gado.
Arquivo da Casa Ficalho, com documentos da casa agrícola, os mais antigos do século XV
A abertura do Palácio Ficalho à comunidade permite manter a casa nas mãos da família, enquanto garante financiamento para a sua conservação. A Câmara Municipal de Serpa está a apoiar a reabilitação do jardim, o fundo +CO3SO financia a contratação de dois trabalhadores. Como contrapartida, a família abre as portas da casa a visitas guiadas e parte da mata à comunidade. Também decorrem eventos de vários tipos e, em breve, vai ser possível pernoitar. Numa primeira fase vão ser abertos dois quartos e uma suite. «Uma casa destas não merece estar fechada sob si própria, até pela importância que tem na cidade e região», justifica Matilde.
Aqueduto que a família mandou construir no século XVII para abastecer a casa e o jardim
A nova dinâmica de abertura ao exterior só é possível graças aos pais, que dedicaram as vidas a reabilitar o palácio. O pai, António Martim de Mello, liderou as obras de conservação, entre 1945 e 1974, premiadas pelo Institut International des Châteaux Historiques. A mãe, Maria das Dores Eça de Queiroz de Mello, dedicou-se ao arquivo e à conceção do jardim, antes um terreno de apoio à casa agrícola. «O que no Alentejo se chama um quintalão», esclarece Matilde. O jardim e a casa são abastecidos por um aqueduto que a família mandou construir no século XVII.
Da casa onde cresceu, com os pais e dois irmãos, até aos cinco anos, Matilde conserva recordações de infância: o frio no inverno, as brincadeiras nas salas e no jardim, as histórias dos antepassados. Já adolescente, apercebe-se das desigualdades sociais e enfrenta alguma «conflitualidade interior». De certa forma, a abertura da casa pacifica esse conflito. «Há outro propósito e isso torna a vivência aqui mais leve. Mais aventurosa, mas mais leve», sorri.