Depois de mais de duas décadas nas corridas de sprint, fez, há poucos anos, a transição para as corridas de resistência. Como é que isso aconteceu?
O meu sonho sempre foi ser piloto de automóveis e, dentro desse objectivo, há várias categorias. Em 2011, entrei num construtor e corri no DTM. Estive lá três anos e surgiu a oportunidade de correr em Le Mans e na resistência, que era uma categoria que eu sempre tinha querido correr - fazer as 24 Horas de Le Mans, principalmente com um carro ganhador. Assim foi, apanhei a oportunidade com as duas mãos e mudei-me para a parte da resistência.
«Na resistência, partilhamos. Não podemos ter ego»
Quais são as principais diferenças entre as corridas de sprint e de resistência?
Um piloto de resistência tem de ser um piloto que não é visto só pela sua rapidez. Tem de ser visto pelo seu carácter, pelo seu espírito de companheirismo e trabalho de equipa. Partilhamos as vitórias e as derrotas, e acho que isso é superinteressante. A Fórmula 1, por exemplo, é um mundo muito mais egoísta, porque tem tudo a ver com o que nós queremos, com o nosso carro. Somos nós, nós, nós: ganhas sozinho, a vitória é tua. Quando perdes, também perdes sozinho.
Nas corridas de resistência não há esse foco no eu?
Na resistência, partilhamos. Não podemos ter ego. Temos de nos ajudar uns aos outros dentro do mesmo carro, porque estamos dependentes do nosso colega de equipa. Se ele ganhar, nós vamos ganhar. Para quem vem do mundo do sprint, desbloquear essa parte de partilhar segredos, onde é que se pode ser mais rápido, aquilo que nós sabemos, isso nem todos conseguem fazer. Eu gosto dessa componente. Quando vencemos, partilhar a felicidade faz-me ser uma pessoa muito mais feliz. Quando perdemos, unimo-nos e tornamo-nos melhores seres humanos.
Como é que se descreve como piloto?
É sempre difícil falarmos de nós próprios, mas aquilo que ouço é que sou profissional e fácil de lidar. Por um lado, sou competitivo e rápido. Por outro, seja qual for o piloto que ponham ao meu lado como colega de equipa, eu consigo usar a parte psicológica para lidar com ele, torná-lo num amigo e, juntos, tentarmos extrair o melhor que temos.
2020 foi um ano atípico. Como é que fez a gestão do ponto de vista profissional?
Não foi fácil, como não foi nem está a ser fácil para ninguém. Todas as minhas corridas estavam a ser adiadas, algumas canceladas, e, se não tenho corridas, não consigo pagar contas. Tive de concentrar-me no que podia fazer: manter-me bem fisicamente, treinar, desfrutar da família, tentar estar pronto para quando voltássemos ao activo. Acima de tudo, ter cabeça fria.
Acabou por resultar.
Sim. Quando voltámos às corridas, eu estava muito preparado. Em termos profissionais, acabou por ser o melhor ano da minha carreira. Ganhei todos os campeonatos em que participei e 70 ou 80 por cento das corridas que fiz, uma percentagem inacreditável.
Filipe Albuquerque começou o ano com uma vitória nas 24 Horas de Daytona
2021 começou logo com uma vitória nas 24 Horas de Daytona. Como foi essa corrida?
A corrida nem começou bem. Fiz o arranque e achei que não tinha qualquer hipótese de ganhar, porque não tínhamos andamento para os nossos rivais. Disse à minha equipa: «Temos de manter a nossa concentração, fazer uma corrida perfeita e logo veremos onde vamos acabar, porque não estamos dependentes de nós para ganhar a corrida». A meio, quando ainda faltavam 12 horas de prova, aconteceu chegarmos à liderança e, a partir daí, começámo-nos a defender dos ataques do segundo. Sempre muito concentrados na estratégia, todos os pilotos fizeram um trabalho excepcional, mas eu sabia que o segundo ia tentar qualquer coisa, porque o segundo lugar não interessa. Sei porque já estive nessa posição. Faltavam apenas 15 minutos para o fim e eu e o segundo classificado estávamos completamente na luta pela vitória. É exactamente essa parte mental, a força de não errarmos, de continuarmos no nosso limite, gerir a parte psicológica, essa frieza, calma e capacidade de resposta nos momentos difíceis, que faz totalmente a diferença. Ele acabou por ter um problema no carro, furou um pneu devido à agressividade com que estava a conduzir e isso facilitou-me muito os últimos minutos da corrida, claro.
Um furo àquela velocidade? Isso não o assusta?
Há sempre uma componente de não sabermos o que vai acontecer, seja um pneu rebentar, uma suspensão partir, tudo aquilo que é a parte da máquina falhar. Mas medo não faz parte, até porque se houvesse medo eu nunca conseguiria ser tão rápido. Os sustos dão aquela adrenalina constante de que eu e quem faz este tipo de trabalho gostamos.
O seu percurso levou-o a este tipo de corridas, mas começou nos karts, por influência do seu pai.
Foi com o meu pai que nasceu toda a minha paixão pelos automóveis. Foi ele que me mostrou o que é um kart, foi ele que me deu a oportunidade de irmos num fim-de-semana de família experimentar o que era uma corrida. Sempre me testou e deu a oportunidade – a mim e aos meus irmãos – de experimentar, de sair da nossa zona de conforto. É com ele que nasce a minha carreira e tudo o que sou hoje.
Houve uma altura em que esteve com um pé na Fórmula 1.
Sim, depois dos karts entrei na carteira de pilotos da Red Bull Junior Team e o objectivo era chegar à Fórmula 1. Cheguei a fazer testes com a Red Bull e com a Toro Rosso mas as coisas não se alinharam para que eu entrasse mesmo numa equipa.
O que aconteceu?
Faltou investimento. Não consegui angariar os fundos ou encontrar a empresa que me apoiasse para o primeiro ano na Fórmula 1. No automobilismo, há aquela primeira componente que é ter os meios para conseguir atingir os fins. É um desporto caro.
É um capítulo encerrado?
Na altura foi difícil, mas hoje sinto-me mais do que realizado. Acho que faz parte do nosso crescimento enquanto pessoa: percebemos que não vivemos num mundo justo. Ultimamente, como tenho andado a ganhar tantas corridas, o meu valor é inquestionável e o quão longe eu poderia ter ido também. O que não falta são exemplos de excelentes pilotos que não chegaram à Fórmula 1.
Não há ressentimento.
Não nos devemos ressentir com as coisas que não aconteceram, mas ficar felizes com as que aconteceram. Isso são escolhas que fazemos connosco próprios e não é só nas corridas, é na vida: decidirmos ser felizes com o que temos. Sou um pai babado. Gosto muito de estar com a minha família, com os meus amigos, de continuar ligado às minhas raízes. Eu sou desse tipo de pessoas: um optimista e alguém que está feliz com a vida.