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16 julho 2020
Texto de Carlos Enes, Paulo Martins, Rita Leça, Sandra Costa e Vera Pimenta Texto de Carlos Enes, Paulo Martins, Rita Leça, Sandra Costa e Vera Pimenta

Pandemia de solidariedade

​​​​​​Em Março, as farmácias reforçaram em 7,8 milhões de euros as dispensas a crédito.

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O que fazem as mãos define o carácter das mulheres e dos homens. Nos idos de Março, Teotónio Pinheiro, 49 anos, teve de fechar o café que sustenta a família, em Carapeços, Barcelos. Fechado em casa, com a mulher e os filhos, tratou do quintal em família. E “desconfinou” para além disso. Pegou na impressora 3D e produziu, uma a seguir à outra, dezenas de viseiras de protecção para toda a vizinhança. «É a minha forma de contribuir». A onda pegou. Às tantas, vários amigos seus estavam de mãos ocupadas. Montaram uma fábrica de viseiras em rede, nas casas de família. Doaram esses equipamentos de protecção a lares, hospitais, centros de saúde, farmácias.


Teotónio Pinheiro fechou o café da família e foi para casa produzir viseiras para os vizinhos, os lares e a farmácia da terra

O povo aproveitou as visitas domiciliárias para expressar reconhecimento pelo esforço das suas farmácias durante a pandemia. Nos ambientes rurais são comuns cestas cheias amor e de produtos da terra: umas couves, ovos de galinhas poedeiras, as primeiras cerejas da época, um coelhinho caseiro. Na ilha do Faial, o casal de septuagenários Olívia e António Silveira ofereceu limões e um ramo de flores à farmacêutica Diva Bettencourt. Em Barroselas, a cada passo, a Dona Rosa chama a sua casa a equipa da Farmácia Lopes para ir buscar um pão de ló caseiro «acabadinho de sair do forno».

 


Em Terras de Miranda, as mulheres também agradecem à Farmácia de Sendim com as próprias mãos. Adelaide Balbino, de 77 anos, e Cândida Mené, 86 – celebrados em Abril, em plena pandemia –, mais do que vizinhas partilham a história de vida. Vestem luto, dos pés aos lenços da cabeça. Os maridos, "Deus os Tenha", já partiram há muito. Elas ficaram sozinhas, cada uma no seu pedaço de quintal. Os filhos da Dona Adelaide foram para Sagres, na outra ponta do país, os da Dona Cândida ficaram em França, onde ela e o marido emigraram 40 anos. Ambas coleccionam factores de risco. Adelaide é hipertensa, tem colesterol elevado e bronquite crónica. Cândida sofre do mesmo, com uma doença de pele nas vezes da bronquite.

 

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​A farmacêutica de Sendim é homónima das duas. Chama-se Cândida Adelaide Viana. A coincidência faz sentido, porque é como se fosse da família. Quando adoecem, não descansa até as ver recuperadas. Se já antes as visitava muito em casa, quando veio a pandemia deu-lhes uma ordem clara: «É proibido ir à farmácia».

Do Minho aos Açores, ninguém ficou sem medicamentos. Em Março, as farmácias dispensaram mais 7,8 milhões de euros de medicamentos a crédito do que é habitual. Com base na contabilidade de uma amostra de 625 farmácias, a Adjustt, equipa de consultores da Glintt, revelou números impressionantes de solidariedade em saúde. Mais de 470 mil portugueses têm “conta aberta” na farmácia. Para fazer face à pandemia, o crédito acumulado nas farmácias à população portuguesa atingiu o valor colossal de 76 milhões de euros.


«Quando um pai precisa de comprar um antibiótico para o filho e diz que não tem dinheiro, é difícil ficar indiferente e recusar crédito», afirma Rui Romero, director-técnico da Farmácia Vitória, no Porto

Há muitas vidas dentro destes números. «Quando um pai precisa de comprar um antibiótico para o filho e diz que não tem dinheiro, é difícil ficar indiferente e recusar crédito”, explicou Rui Romero, director-técnico da Farmácia Vitória, ao jornal Expresso. A farmácia é uma âncora para a comunidade do bairro do Cerco, em Campanhã, um dos mais pobres da cidade do Porto. «Às vezes, uma pessoa tem um mês ou outro mais aflito e eles facilitam. A pessoa paga quando pode», agradece Álvaro Cardoso, que chegou ao bairro há quatro anos. «Para quem é pobre e recebe reformas baixinhas, é uma grande ajuda», elogia Maria Oliveira, antiga operária fabril, já reformada.


«Para quem é pobre e recebe reformas baixinhas, a conta na farmácia é uma grande ajuda», elogia Maria Oliveira, 74 anos

A Dona Adelaide e a Dona Cândida também não precisaram de ir ao banco levantar dinheiro para receberem os medicamentos em casa. Têm ambas crédito ilimitado. «Eu até me posso esquecer, que elas só não pagam se não puderem», testemunha Cândida Viana, directora--técnica da Farmácia de Sendim. Com tanta coisa em comum, as duas viúvas lembraram-se de retribuir o cuidado da farmacêutica com o mesmo gesto de carinho. Cada uma deitou mãos à agulha e puxou pelo algodão. E assim passaram muitos dias da quarentena.

«Na aldeia temos o amigo, o vizinho, o filho. As pessoas não sentem o isolamento, ao contrário do que acontece nas grandes cidades», resume o farmacêutico Francisco Pinto Coelho, de Carapeços. A primeira parte é verdade, a segunda tem muitas honrosas excepções.

 


Vamos do Porto para Lisboa. No primeiro dia do regresso às aulas, as nove farmácias de Marvila estavam à entrada das escolas. Ofereceram máscaras, álcool gel e instruções claras de como evitar o contágio a estudantes e professores. Um bairro de 40 mil pessoas também pode ter rede. «Há uma ligação muito grande entre todas as instituições de Marvila – e em particular com as farmácias. As farmácias são fundamentais para o bem-estar da população e têm feito um trabalho extraordinário», ​descreve Joaquim Brito, vogal da junta de freguesia.

Em todo o continente e ilhas, quando o álcool foi todo reservado pelo Estado e as máscaras se tornaram um produto de luxo, as farmácias foram a tábua de salvação para muitos utentes em pânico. Com esforço e muitos telefonemas, lá foram conseguindo uma caixa de máscaras, outra de luvas, uns frascos de desinfectante. Ofereceram equipamentos de protecção a corporações de bombeiros, lares de idosos, quartéis da GNR e até centros de Saúde. «Eles não tinham nada», relata Rita Domingues, directora-técnica da Farmácia Albuquerque, de Vinhais.

A escassez de materiais de protecção levou ao súbito aparecimento de uma armada de fornecedores de ocasião. Em Março, a todas as horas chegavam propostas absurdas aos telefones e e-mails dos proprietários e directores-técnicos. Por exemplo, álcool etílico em jerricans de azeite, a 26€ o litro. Ou álcool gel ao preço estratosférico de 168€. Isso mesmo, cento e sessenta e oito, cada litro. A Associação Nacional das Farmácias pediu a intervenção do Governo, em carta ao primeiro-ministro, e fez chegar à ASAE resmas de provas documentais.


O farmacêutico Berto Cabral produziu centenas de frascos de álcool gel. Com o lucro, ofereceu um ventilador ao hospital público da Ilha Terceira

As vagas negras da especulação foram dar à Praia da Vitória, onde Berto Cabral tem a sua farmácia. Quando olhou para as mãos, subiu-lhe à cabeça o instinto profissional. «Como farmacêutico, não poderia deixar de fazer o que me competia», declarou à RTP. Desatou a produzir centenas de litros de álcool gel para serviços de saúde, lares de idosos, repartições públicas e particulares. «Temos formação para a preparação de medicamentos manipulados, assumi essa responsabilidade», expôs, surpreendido pelo interesse dos jornalistas. Em poucos dias, esgotou as matérias-primas e os frascos dos fornecedores locais. Ofereceu e vendeu várias centenas. O negócio anda em crise, mas ele não quis ficar com aquele lucro inesperado. «Era um dinheiro extra e do qual a farmácia não podia estar à espera, nem dependente». Ainda pensou em comprar novos equipamentos para o laboratório, mas optou por oferecer antes um ventilador ao Hospital Santo Espírito, da ilha Terceira. Se investiu contra o vírus, mais depressa saldou contas com a comunidade.

A especulação deixou os farmacêuticos à beira de um ataque de nervos. «Foi uma fase muito desgastante. Trabalhámos com muitos fornecedores que não conhecíamos e de que não tínhamos referências», recorda o director-técnico da Farmácia Gouveia, em Lisboa. «Uma máscara que custava cerca de dez cêntimos, de um dia para o outro não se arranjava por menos de um euro e meio», lamenta José Amorim. A escalada de preços não parou aí. Em Março, as máscaras cirúrgicas, descartáveis, atingiram 3€ de preço médio unitário de venda às farmácias. As máscaras com maior factor de protecção pareciam obras do Diabo: um dia custavam 6€, no orçamento seguinte 17€, noutro fornecedor 38€ por exemplar. Fabricantes de meias e empresas de ferragens começaram, de repente, a vender máscaras.

A maioria dessas ofertas envenenadas foi rejeitada liminarmente. Para garantir máscaras, luvas e desinfectante aos utentes de risco e às próprias equipas, os farmacêuticos esforçaram-se por ficar apenas às portas do inferno da agiotagem. «A minha maior aventura foi comprar por três euros um frasco de álcool que antes custava 47 cêntimos», confessa Cláudia Caroço, proprietária da Farmácia Nova, em São Marcos da Serra, Silves.


«Fala-se muito dos hospitais, dos centros de saúde, mas raramente se fala das farmácias, que prestam cuidados absolutamente essenciais aos portugueses», declarou José Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos, de visita a uma farmácia de Benfica

No início de Maio, cerca de mil farmácias receberam máscaras doadas pelo movimento “Todos Por Quem Cuida”. Cidadãos e empresas juntaram dinheiro para oferecer materiais de protecção individual aos profissionais de saúde. «Fala-se muito dos hospitais, dos centros de saúde, mas raramente se fala das farmácias, que prestam cuidados absolutamente essenciais aos portugueses», declarou José Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos, de visita a uma farmácia de Benfica.

Com a pandemia, a directora-técnica da Farmácia de Sendim passou mais tempo cá fora do que ao balcão de atendimento. «Temos de mudar o paradigma, em especial nas zonas do Interior do país. Mais do que serem os utentes a virem à farmácia, deve ser a farmácia a ir ao encontro deles», defende Cândida Viana. «Saio todos os dias», descreve.

A experiência amadureceu-lhe o discurso, parece um rio de verdades: «O domicílio não é apenas o acto de entregar os medicamentos. É ouvir as preocupações das pessoas, saber da sua saúde, das suas dores. É ver como vivem e do que realmente precisam». Nesta pandemia, a farmacêutica de Sendim recebeu duas peças de croché feitas à mão.
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