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13 julho 2020
Texto de Carlos Enes, Irina Fernandes, Paulo Martins, Rita Leça, Sandra Costa e Vera Pimenta Texto de Carlos Enes, Irina Fernandes, Paulo Martins, Rita Leça, Sandra Costa e Vera Pimenta

A árvore de Natal

​​​​​​​​​2.923 farmácias de luz acesa contra o vírus em todo o território.

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​Estamos seis quilómetros acima de Barcelos, numa daquelas terras do Minho que mudam qualquer coisa ao longo do tempo para nunca perderem o essencial. Este vale já era habitado na época dos romanos, como prova a moeda de bronze com a carantonha inconfundível do imperador Maximino Daia encontrada no castro da Picarreira. Em Carapeços, convivem em perfeita harmonia as ruínas de sete moradias em pedra desse povoado de há 1.700 anos, casas antigas de aldeia e modernas vivendas suburbanas em betão armado. Ao contrário do que aconteceu por esse Portugal adentro, a escola primária resiste e os comboios ainda param no apeadeiro. Para além disso, a freguesia, com mais de dois mil habitantes, tem fanfarra, grupo de teatro e estádio com relvado sintético. No último jogo antes do fim abrupto do campeonato, os rapazes da terra despacharam por nove a zero o Fonte Coberta. 


Maria Sameiro Rosa recorreu à Farmácia Carapeços em momentos de aflição com as crises de asma do filho

 


Este enquadramento está mesmo a pedir uma farmácia. Maria Sameiro Rosa é utente há mais de 20 anos. Foi lá que tantas vezes esclareceu dúvidas e resolveu momentos de aflição com as crises de asma do filho mais novo. Quando rebentou a pandemia, recolheu-se com respeito e deixou de entrar em casa dos pais, ambos doentes de risco. Mata as saudades à distância, em voz alta: «A minha mãe grita: “Queres ovos?”. Depois pousa-os no fundo do quintal e eu vou lá buscá-los». 


Farmácia faz entregas ao domicílio, através da linha gratuita 1400 

A farmácia faz entregas ao domicílio, através da linha gratuita 1400. Ela prefere iri lá, porque em tempo de pandemia assumiu a responsabilidade de abastecer a sua casa, mas também a dos pais, de tudo o que faz falta. «Eu sinto que a farmácia é dos locais mais seguros para se estar», afirma Maria Rosa. Dantes entrava a qualquer hora, às vezes só para cumprimentar a equipa, agora liga primeiro a agendar as visitas. O que mais a preocupa são as idas ao supermercado. «Quando chego a casa desinfecto as embalagens, deixo-as a arejar e vou tomar banho», relata a operária fabril, de 45 anos.

De um dia para o outro, a Farmácia Carapeços levantou uma parede de acrílico e marcou no chão, a um metro do balcão, barras vermelhas. Só entram três pessoas de cada vez, uma por posto de atendimento, e guardam essa distância. As novas regras são respeitadas por todos, sem excepção. «A farmácia sempre foi um ponto de apoio à comunidade», expõe o farmacêutico Francisco Pinto Coelho, «e agora assume um peso ainda maior». Conta ele que foi preciso «acalmar pessoas que entraram em pânico», assim como «chamar à razão quem não entendeu logo o risco da pandemia e a importância de seguir as recomendações da Direcção-Geral de Saúde». E terá conseguido? «As pessoas ouvem-nos», responde, sem hesitar, o farmacêutico.


Célio Rebolo ficou «impressionado com a firmeza» da farmacêutica do Curral das Freiras

«As pessoas seguem os conselhos, se vierem da farmácia», concorda Célio Rebolo, que há ano e meio regressou a Curral das Freiras, aldeia encantada cravada nas escarpas da ilha da Madeira. «Fiquei impressionado com a firmeza da doutora Ana quando nos disse que era preciso fazer isto, mais isto e aquilo porque a situação era grave», relata o ex-emigrante, que durante 20 anos trabalhou como segurança privado em Londres. A pandemia de COVID-19 levou com ela os turistas e fechou a escola, as lojinhas de artefactos regionais, os cafés e restaurantes, os poucos negócios familiares.  O centro de saúde reduziu o horário a três manhãs por semana – e os serviços à enfermagem e ao secretariado. 

A equipa de quatro profissionais da Farmácia do Vale anda numa azáfama.  Aqui ainda há analfabetismo e farta iliteracia. Muita gente não sabe usar recursos digitais, como o e-mail ou as redes sociais, nem consegue ler o papel afixado na porta do posto de saúde, indicando o novo horário. As pessoas precisam de uma cara, de alguém que as oiça e oriente quanto às radicais e repentinas alterações de comportamento impostas pela pandemia. Procuram a farmácia ansiosas, cheias de dúvidas e de medos. É aqui que se habituaram a resolver os seus problemas, de saúde e os outros. Perguntam quando os técnicos da Segurança Social virão a Curral das Freiras. Por vezes até telefonam, antes de saírem de casa, só para confirmar se o supermercado está aberto. «A farmácia é a única luz acesa», descreve a farmacêutica Ana Ornelas, com um brilho nos olhos. 


Em Curral das Freiras, Madeira, as pessoas procuram a farmácia ansiosas, cheias de dúvidas e de medos


Ana Ornelas manteve a farmácia aberta quando o centro de saúde reduziu o horário

No continente e nas ilhas, 2.923 farmácias iluminaram Portugal como uma gigantesca e harmoniosa árvore de Natal, sem pontos escuros. Ainda no mês de Março, a rede lançou um centro de atendimento nacional. Com uma chamada telefónica para o 1400, gratuita a partir de qualquer rede, os portugueses podem encomendar medicamentos 24 horas por dia. O serviço informa quais as farmácias de proximidade com os fármacos disponíveis, o que ajuda os doentes a resolver os problemas causados pelas falhas de abastecimento do mercado.  

 


Foi o caso de Custódio Sousa, que correu várias farmácias à procura de um medicamento urgente para a filha, até que uma farmacêutica o aconselhou a ligar 1400. Foi remédio santo. Em poucos minutos reservou uma embalagem na Farmácia Nova Alverca. «Poupei imenso tempo» – conta – «se não fosse assim, teria de continuar a correr farmácias para ver onde havia». «É uma iniciativa que protege os doentes de risco», considera a directora-técnica, Graça Vieira. Já atendeu vários utentes encaminhados pela linha, inclusivamente uma senhora do concelho da Lourinhã que não encontrou solução mais perto. Enviou-lhe o medicamento para casa, a mais de 60 quilómetros de distância. Um protocolo com os CTT garante medicamentos ao domicílio, em todo o país, com o devido aconselhamento farmacêutico, prestado por telefone. 


Custódio encontrou o medicamento de que precisava com uma chamada gratuita para a linha 1400

Centenas de farmácias já antes entregavam medicação em casa, muitas sem cobrar por isso. O serviço generalizou-se à medida que a pandemia cavalgou. Para Sílvia Bentes, não é novidade palmilhar sete aldeias do concelho de Alandroal. Qual cavalo alado, a Renault 4L branca está habituada ao esforço. «Dividimos as viagens um dia para cada aldeia», explica a directora-técnica da Farmácia Santiago Maior, na Aldeia de Pias. Sete dias por semana, 365 dias por ano. Há luzes que nunca se apagam. 


A carrinha 4L percorre sete aldeias do Alandroal a entregar medicamentos

«Graças a Deus que temos a Lurdes. Graças a Deus!», profere em uníssono o casal de septuagenários Maria da Conceição e Abel Zamora. São ambos diabéticos e vivem sozinhos em Vale das Fontes. Há 13 anos que a técnica de farmácia Lurdes Maia percorre as estradas quase vazias das 104 aldeias do concelho de Vinhais a dispensar medicamentos ao domicílio. «É o nosso anjo da guarda», repetem Abel e Maria, reconhecidos. 


«Graças a Deus que temos a Lurdes. Graças a Deus!», afirma o casal de septuagenários Maria da Conceição e Abel Zamora

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A Farmácia Albuquerque, em Vinhais, desinfecta as mãos aos clientes a cada entrega de medicamentos ao postigo ou ao domicílio

 


Medicamentos e aconselhamento farmacêutico ao domicílio são armas estratégicas contra a pandemia, em particular em meio urbano, onde o risco de contágio é maior. «Ter um farmacêutico sempre disponível é muito bom e os utentes compreendem isso, agora mais do que nunca. Ao mesmo tempo, o sistema promove a verdadeira adesão à terapêutica», afirma Anabela Mascarenhas, directora-técnica da Farmácia Saúde, da Figueira da Foz. 


As visitas dos farmacêuticos são particularmente importantes para os idosos, assustados com o terror diário exibido na televisão


«Prefiro ficar aqui a olhar para os passarinhos e as galinhas do que arranjar um passaporte para o outro lado», conta Alberto Lima, 76 anos, que recebe os medicamentos ao portão

As visitas dos farmacêuticos são particularmente importantes para os idosos, assustados com o terror diário exibido na televisão. «Prefiro ficar aqui a olhar para os passarinhos e as galinhas do que arranjar um passaporte para o outro lado», graceja Alberto Lima, 76 anos, a voz sorridente através da linha telefónica. Ele e a mulher, Lurdes, de 69, padecem ambos de males «inerentes ao bilhete de identidade»: colesterol e tensão arterial elevada. Ele, como muitos homens da sua idade, soma ainda problemas na próstata. Por isso, ainda antes de o Governo declarar o estado de emergência, fecharam o café de que são proprietários e confinaram-se voluntariamente no palmo de terra do quintal de casa, em Cabeçais, concelho de Arouca. Ocupam os dias a apanhar fruta, a arrancar ervas e a tratar dos cães, galinhas e ovelhas. Contam com os filhos para os abastecer de supermercado e com o farmacêutico de uma aldeia vizinha para manter a medicação em dia. «Faço-o com o maior dos gostos. Mais ainda agora. É o meu pequeno contributo para minimizar um problema de tão grande dimensão», explica José Miguel Sousa, director-técnico da Farmácia Central, de Escariz.


A Farmáca Central, de Escariz, tem sempre parte da equipa na rua, a fazer domicílios

 


Em Souselo, bonita localidade na margem dos rios Douro e Paiva, a extensão de saúde encerrou por causa da COVID-19. Os médicos foram concentrados em Cinfães. Consultas médicas, só ao telefone. As duas clínicas privadas também fecharam. A Farmácia Ferreira foi o único serviço de saúde que se manteve em funcionamento. No início da pandemia, produziu e enviou a quatro mil famílias, via CTT, um folheto apelando a manteremse o mais possível em casa. A farmácia assumiu o compromisso de ficar sempre contactável, por telefone, e-mail e redes sociais. «Fomos muito procurados para esclarecer dúvidas e dar aconselhamento em saúde, porque as pessoas têm receio de deslocar-se às urgências, em Cinfães ou em Penafiel», relata Ricardo Monteiro, o farmacêutico proprietário. 



Em Souselo, a extensão de saúde e duas clínicas encerraram. A farmácia foi o único serviço de saúde disponível no pico da pandemia  

 


A equipa faz domicílios todos os dias e toma a iniciativa de contactar os utentes. «Ligam-me para saber se estou bem, se preciso de alguma coisa», conta Ana Morais, 40 anos. Saiu de casa pela última vez no dia 12 de Março porque está «a levar muito a sério esta situação». Quando regressa de ir comprar o pão, o marido vai directo para o banho e a roupa dele para a máquina. Ela não põe o pé fora do portão, porque sente que tem «a imunidade em baixo». Sofre de depressão crónica, crises de pânico e ansiedade. «Tranquiliza-me que se preocupem comigo. São fenomenais», agradece a doente. 


«Qualquer pequena falha na assepsia pode ter um impacto terrível naqueles idosos. É uma enorme responsabilidade», desabafa o farmacêutico

Todas as semanas, a Farmácia Ferreira prepara a medicação de grande parte dos 80 idosos do lar e centro de dia da Associação de Solidariedade Social de Souselo. Os profissionais da instituição ficaram sobressaltados com a possibilidade de o vírus entrar no edifício. Para os ajudar a evitar uma desgraça, a farmácia forneceu-lhes termómetros, máscaras, álcool e até 12 fatos completos de protecção individual. «A equipa da farmácia é muito profissional. Confio que os nossos idosos ficam em segurança», agradece a enfermeira Ana Santos. Os procedimentos de assepsia tornaram-se de uma minúcia obsessiva. Os farmacêuticos que preparam a terapêutica também usam equipamentos de protecção novos. O espaço de trabalho e as caixas de transporte são totalmente higienizados. «Sabemos que qualquer pequena falha pode ter um impacto terrível naqueles idosos. É uma enorme responsabilidade», desabafa Ricardo Monteiro.
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