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3 fevereiro 2022
Texto de Sandra Costa Texto de Sandra Costa Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro Vídeo de Vasco Rocha Vídeo de Vasco Rocha

Ouvir o silêncio

​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​Viagem às aldeias do xisto da serra da Lousã.​

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A vila da Lousã acorda envolta em nevoeiro, mas basta percorrer alguns quilómetros na estrada que sobe à serra para ascender acima das nuvens. Diante dos olhos estende-se um mar de algodão sobre o verde da floresta. Este é o caminho para chegar às aldeias de xisto do concelho da Lousã: Casal Novo, Talasnal, Cerdeira, Candal, Chiqueiro e Vaqueirinho. Todas diferentes, cada uma se faz de pedras engenhosamente empilhadas em forma de casas, que se alongam pelo chão dos caminhos, sobem aos muros, degraus, tanques e fontes, cobrindo tudo de xisto preto e castanho. Além da pedra, há madeira nas portas, janelas e corrimãos dos varandins, há erva, musgo, fetos e heras, e um manto compacto de copas de árvores a perder de vista, onde sobressaem castanheiros majestosos. Aqui, a mão humana fundiu-se harmoniosamente com a Natureza. 

 
Indicação de trilhos na aldeia do Talasnal. Muitos procuram a serra pelos trilhos que é possível percorrer a pé, de bicicleta, mota ou jipe

Visitar a serra da Lousã é entrar num mundo onde é possível tropeçar em cascatas, veados, corsos e javalis, e encontrar ervas de cheiro nos quintais com os nomes desenhados a letra bonita em finas tiras de xisto. «É como voltar ao passado. Um tipo de vida antiga que atraiu estrangeiros a partir da década de 80 e muitos citadinos hoje», explica Marília Pereira, médica durante 36 anos no centro de saúde da Lousã, extensão de Serpins. Nesta viagem descansa-se o corpo e enche-se de paz o espírito. «Sai-se daqui revigorado», e parece quase um conselho médico. 


A artista plástica Kerstin Thomas criou na Cerdeira o projeto artístico Home for Creativity, que traz à aldeia gente dos cinco continentes

Nuvens de vapor desprendem-se do alcatrão, à medida que o sol aquece a pele e arranca a humidade dos ossos. Uma placa indica, à direita, a estrada estreita que serpenteia encosta acima até à Cerdeira. Há 34 anos, dois jovens artistas, Kerstin Thomas e Bernard Langer, escolheram morar nesta aldeia, então totalmente desabitada. Aqui criaram um projeto artístico que lhe deu identidade. Na escola de artes aprende-se a mexer na roda de oleiro, construir casinhas de xisto ou cozinhar chanfana (carne de cabra velha assada em vinho tinto). Foram recuperadas casas, transformadas em alojamento local e num hostel. Nas residências artísticas, a Cerdeira recebe gente do mundo inteiro. «É um projeto virado para o mundo, por isso chamámos-lhe Home for Creativity», explica Kerstin, que fica feliz quando junta à volta da mesa pessoas dos cinco continentes. Da varanda de madeira suspensa, em frente da Casa das Artes, avista-se o vale e, ao fundo, as eólicas sobre os cumes. Cá acima chega o marulhar da ribeira de São João, que embala a vida desta aldeia.


Jorge Caetano é o único residente no Talasnal. Conhece a serra desde 1997. É dele o primeiro espaço aberto ao público, o bar O Curral

Muitas casas de xisto foram recuperadas, mas quase ninguém aqui mora a tempo inteiro. Não há cabras, ovelhas, cães ou galinhas como antigamente. Apenas gatos, estendidos nas lajes aquecidas pelo sol. «A vida das aldeias resume-se aos turistas», diz Jorge Caetano, os olhos azuis muito vivos. É o único residente no Talasnal. A aldeia foi «amor à primeira vista» quando descobriu a serra, em 1997. Nessa altura não havia água canalizada nem saneamento, as casas restauradas eram meia dúzia. Jorge comprou ali uma «casa de fim de semana», a mesma onde reside há três anos. Em 2001 transformou a loja (espaço usado para guardar os animais) num bar. O Curral foi o primeiro espaço aberto ao público, «para as pessoas conviverem». As mesas são enormes lajes negras cheias de textura, as paredes estão forradas com ferramentas de trabalho antigas e mensagens deixadas pelos visitantes. Da varanda, uma vista brutal sobre a serra. Entre o verde eleva-se uma linha ondulante de névoa, que assinala o curso de água que cruza o vale. Jorge gosta do sossego, garante que não padece de solidão. Aos fins de semana, o filho vem ajudar n'O Curral e a filha ocupa-se no Dom Mercadinho, onde se compra chá, mel, licores ou doces feitos de castanha.


Cascata junto à piscina fluvial de Nossa Senhora da Piedade, junto à ermida com o mesmo nome e ao Castelo da Lousã

Antes do alcatroamento da estrada, em 2013, a serra subia-se de jipe. Eram precisos 40 minutos, hoje bastam 15. O Talasnal é uma das aldeias mais visitadas, há gente o ano inteiro, por vezes filas de carros estacionados à beira da estrada. Além das botas dos caminheiros, já se veem imprudentes saltos altos a desfilar sobre o escorregadio chão de lousas. Mas à serra vêm sobretudo os amantes da Natureza. Há quem chegue para caçar, fazer piqueniques ou apanhar castanhas. Em setembro e outubro vêm ouvir a brama dos veados. Muitos procuram os trilhos, que é possível percorrer a pé, de bicicleta, mota ou jipe. Os mais bonitos são os do Marigo, da Levada e o que liga o Talasnal ao castelo, aconselha Jorge. 

 
Praia fluvial de Serpins, uma das atrações da região no Verão

No verão, as praias fluviais são a grande atração, em especial a de Nossa Senhora da Piedade, junto à ermida com o mesmo nome e ao Castelo da Lousã, «paisagisticamente, das mais belas coisas que em Portugal se encontram», escreve José Saramago na “Viagem a Portugal”. A pequena atalaia de pedra não reina nas alturas, antes surge imersa na vegetação, lado a lado com a capelinha branca. Depois de trepar a ambas, nada como refastelar-se ao calor da lareira n'O Burgo e saborear as iguarias locais: chanfana, veado, javali, cabrito, galinha, coelho. Uma barrigada de comida, porque, como diz o proprietário, conhecido como Tó do Burgo, «aqui na serra é tudo à bruta!». 


Castelo da Lousã, uma das mais belas paisagens de Portugal, segundo José Saramago, prémio Nobel da Literatura

Para conhecer a história da serra da Lousã, desça à vila e visite o Museu Etnográfico Dr. Louzã Henriques, construído na casa de família do antigo psiquiatra e colecionador. Os óculos de realidade aumentada vão fazê-lo sentir-se numa casa serrana. «As crianças adoram», garante Patrícia Lima, responsável pelos museus municipais. A arqueóloga desafia a apreciar as peças criadas por designers, estudantes universitários e artífices, que «reinterpretam objetos vulgares do quotidiano das aldeias, como as tesouras de tosquia, à luz da contemporaneidade da nova realidade dos lugares, mas com apego e imagem emocional». 


No Museu Etnográfico Dr. Louzã Henriques, os óculos de realidade aumentada transportam-nos para o interior de uma casa serrana

O coração de Marília Pereira pende para Serpins, freguesia onde conviveu com uma «população acolhedora, com tradições e princípios». A vila foi sede de concelho desde 1514 até à reforma administrativa de Mouzinho da Silveira, em 1836. Na rotunda principal, a estátua de D. Manuel I, construída com reciclagem de ferro pelo escultor local Aureliano Aguiar, celebra os 500 anos da atribuição do foral à vila. «Nas artes, a tradição passa pela cestaria, cerâmica, madeira e xisto», conta a médica, que destaca as casinhas de xisto criadas por João Carinhas e as peças de madeira de Bruno Silvestre. 


A médica Marília Pereira trabalhou 36 anos na região e delicia-se com «o modo de vida antigo» da serra, conservado no Ecomuseu da Serra da Lousã

Em Serpins encontra-se o último moinho de água a laborar, entre os vários ao longo do rio Ceira. Existe até uma rota dos moinhos. O moleiro Júlio Ferreira começou a trabalhar aos 12 anos, com uma pá e uma picareta. «Era melhor do que ir à escola», ri-se. Vendeu azeite, foi padeiro e caixeiro de armazém, hoje dá vida ao moinho centenário que foi dos avós. «Só sobra este, entre as mais de 30 mós que existiam nesta freguesia», conta, entre o orgulho e a pena. ​​


O moleiro Júlio Ferreira dá vida ao moinho centenário que foi dos avós​

Ao fundo desenha-se o contorno da serra, pintalgada aqui e além pelas casinhas de xisto das aldeias. Em breve, esconde-se o sol e calam-se os pássaros. No sossego da noite pressentem-se javalis e veados. Ouve-se o silêncio.

 



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