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14 outubro 2019
Texto de Vera Pimenta Texto de Vera Pimenta Fotografia de José Pedro Tomaz Fotografia de José Pedro Tomaz

Os dias da ira

​​​​​​​​​​​​​​​Histórias de doentes crónicos aflitos e de um farmacêutico desesperado.

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Norminda, de 70 anos, e José Ameixieira, de 75, saem de casa de manhã para beber café. Espera-os a habitual viagem de dez minutos de carro até à pastelaria mais próxima, em Escariz. A alternativa é um percurso de meia ​hora a pé, que Norminda ainda faz ocasionalmente, em jeito de caminhada.

O café é uma boa desculpa para passar na farmácia. Esta há-de ser a terceira ou quarta visita nesta semana – perderam a conta. Na Farmácia Central, em Escariz, quem os recebe é uma cara conhecida, mas apreensiva.


«De 63 medicamentos em falta, só consegui um!», espanta-se o farmacêutico José Miguel Sousa 

O farmacêutico José Miguel Sousa não precisa de pesquisar no sistema para saber que os medicamentos para o Parkinson do senhor José fazem parte da lista negra dos indisponíveis.

As linhas de cor vermelha confirmam as suspeitas. O próximo passo é ligar para os armazenistas, para saber se há o medicamento noutro armazém. Ao som da chamada em espera contam-se os minutos perdidos. Se houver, espera-se mais dois dias pela entrega. Se não, liga-se a um colega de profissão e pede-se uma embalagem emprestada. Quando o medicamento esgota, as opções também.

O casal aguarda pacientemente pela resposta, no pequeno sofá da entrada. E recorda como os tremores apareceram há três anos. «A minha mãe também tremia muito e achávamos que era de família», recorda José. Em pouco tempo foi diagnosticado com Parkinson. A medicação melhora os sintomas, permite-lhe comer mais facilmente e ajuda no equilíbrio. O problema é encontrá-la. 

«Tenho uma receita de três caixas de Mysoline e aqui não consigo» – explica Norminda. A filha já chegou a correr todas as farmácias do Porto, para conseguir duas ou três embalagens. «Uma caixa acaba rápido, a tomar quatro comprimidos por dia. E o especialista é quase de ano em ano. A quem vamos pedir para trocar?».

Norminda e José não estão sozinhos. Trazem aos ombros a frustração de 3,4 milhões de portugueses que, no último ano, foram afectados pela indisponibilidade de medicamentos. As histórias por trás dos números mostram a aflição de correrias desenfreadas de farmácia em farmácia. À procura da solução que podem nunca chegar a encontrar. 


A freguesia de Escariz é muito dispersa

Numa freguesia tão dispersa como a de Escariz, não são raros os utentes que, apesar da idade avançada, se vêem obrigados a fazer três ou quatro quilómetros a pé para chegar à farmácia. «Muitas vezes, antes de ir para casa, ando aqui e ali a fazer entregas ao domicílio», explica o farmacêutico. A boa vontade, embora lhe valha a confiança dos utentes, não resolve o problema. 

«Sentimo-nos verdadeiramente impotentes» – afirma José Miguel Sousa – «ao ver a pessoa a entrar por aquela porta e nunca saber se vamos conseguir dar-lhe os medicamentos que procura». Pior ainda, é quando o utente não tem um único comprimido de sobra para tomar.

O director-técnico de 51 anos analisa uma lista de produtos que faltam na farmácia há dois meses: antidiabéticos orais, medicamentos para a tiróide ou hipertensão dispositivos para a asma, vitamina B12. «Alguns repetem-se, outros são mais recentes. Esta lista vai aumentando; nunca diminuindo», relata José Miguel Sousa. «De 63, só consegui um!», espanta-se.

A indisponibilidade de medicamentos obriga as pessoas a voltar ao médico para pedir outra prescrição. Só no ano passado, foram necessárias 1,4 milhões de consultas de repetição, que custaram ao SNS entre 35 e 44 milhões de euros. «E o médico nem sempre está disponível» – explica o farmacêutico – «se isto acontecer ao fim-de-semana, o mais provável é que o utente interrompa a terapêutica».


Conceição Ferreira já teve de pagar medicamentos por completo para garantir que a filha continuava a tratar a epilepsia

Conceição Ferreira não se lembra da última vez que conseguiu aviar uma receita por completo. Quando, há um ano, a filha de apenas 15 anos começou a ter crises de epilepsia, ninguém esperava que este sintoma fosse indicador de um tumor na cabeça. Depois da operação, a medicação para o controlo das crises ainda é a única forma de garantir que Eduarda possa um dia vir a ter uma vida normal.

Há algumas semanas, quando tentou levantar a receita de Castilium de 10mg, a única dose disponível na farmácia era a de 20mg. Voltou à médica, que lhe disse que o sistema informático do centro de saúde indicava o contrário. Por isso, não conseguia alterar a receita. «Comprei e paguei a totalidade» – recorda Conceição – «não ia deixar a minha filha sem o medicamento».

«Quando é preciso mudar de medicamento, mostro a caixa ao utente e explico-lhe. No dia seguinte, descubro que a toma não foi feita», lamenta Sónia Silva

A preocupação com a medicação é constante no único centro de dia da zona. Principalmente para a auxiliar de acção directa Sónia Silva, de 43 anos, responsável pela preparação da medicação dos utentes.


Faz reservas com antecedência, mas isso nem sempre chega para evitar as rupturas

Com idosos a tomar mais de dez comprimidos por dia, ligar para a farmácia a pedir a reserva é a única maneira de minimizar as consequências da indisponibilidade. Quando estão esgotados, pede-se ao centro de saúde que altere a prescrição.


Sónia Silva passa por muitos apuros. É a responsável pela medicação dos utentes de um centro de dia

A parte mais difícil vem depois. «Eu mostro a caixa antiga ao utente e explico-lhe: ”Este medicamento deixou de ser comercializado. Vamos passar para um novo, pode ser?”». No dia seguinte, quando o utente regressa ao centro de dia, descobre-se que a toma não foi feita. «Ó​ menina, olhe que isto não está bem. O meu não é desta cor».

Nas terras onde pouco sobra, as farmácias prevalecem. Ao serviço de utentes envelhecidos, tantas vezes iletrados, para quem, quase sempre, são o único ponto de socorro. As populações que mais precisam de medicamentos são também as que mais sofrem com a indisponibilidade.

«É preciso que alguém olhe para este problema com muito cuidado – aconselha José Miguel Sousa – «uma farmácia de aldeia deve ter a mesma capacidade de responder aos utentes que uma farmácia de cidade».

O farmacêutico julga que a preferência dos distribuidores por farmácias de maior facturação agrava a assimetria entre o Interior e o litoral. E deixa um aviso: «Se esta situação não melhorar, vai levar ao desaparecimento de mais farmácias».


Doente oncológica desde 2003, Natália Leite liga com muita antecedência a reservar medicamentos

Natália Leite, de 63 anos, não esconde o carinho que sente pela sua farmácia. «Conheço-a desde os tempos do avô do doutor Miguel» – recorda, orgulhosa – «o problema é que agora vou às consultas e, quando chego lá, não consigo a medicação».

Doente oncológica desde 2003, a vida ensinou-a a encarar os desafios de forma prática. «Eu agora já me previno e antes que acabe ligo para cá a pedir para guardar» – conta. «Se não há, o doutor Miguel liga, liga, liga até conseguir». Graças a isso, Natália nunca ficou um dia sem tomar os seus medicamentos – venham eles do armazenista, de uma farmácia vizinha ou até do Algarve.

Enquanto trata dos seus afazeres diários, Natália fala das pessoas que não valorizam este esforço extraordinário dos farmacêuticos. «Há alguns que acham que a culpa é da farmácia. Eu não penso assim, porque vejo como tem sido comigo. E eu não pago mais que os outros. Deus me livre! Eles têm sido fantásticos».


O farmacêutico perde horas ao telefone à procura de medicamentos

Ao balcão, as horas são passadas a aviar as expectativas, as queixas e o desespero. As receitas, essas, raramente são aviadas por completo. E José Miguel, que sabia desde cedo que nasceu para ser farmacêutico, não podia imaginar o desgaste que lhe viria a trazer a profissão que o escolheu.

«Começa a não haver mais nada nas terras além da farmácia» – desabafa – «mas de que é que isso vale, se não houver medicamentos?».
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