Política de utilização de Cookies em Revista Saúda Este website utiliza cookies que asseguram funcionalidades para uma melhor navegação.
Ao continuar a navegar, está a concordar com a utilização de cookies e com os novos termos e condições de privacidade.
Aceitar
5 abril 2021
Texto de Sandra Costa Texto de Sandra Costa Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

«O nosso trabalho faz sentido»

​​​​​​Os palhaços da Operação Nariz Vermelho curam a tristeza das crianças hospitalizadas.​

Tags
​É difícil plantar sorrisos no rosto de crianças doentes?
Andreas Piper (AP) – O nosso trabalho consiste em​ transformar o ambiente. Visitamos os serviços pediátricos dos hospitais e dedicamo-nos a cada criança que lá está. Um coração de cada vez. Usamos a empatia para criar uma ligação emocional e estimular a parte saudável da criança através da brincadeira, o que contribui para a cura.  

Filipa Mendes (FM) – Começamos por “ler” o ambiente do quarto, que às vezes está focado na dor. A partir daí, adaptamo-nos ao humor da criança e tentamos construir um momento em que há uma troca. Quando ela aceita a proposta e entra no jogo, é mágico! Por vezes saímos e a criança está esquecida da sua dor.

Andreas Piper e Filipa Mendes dão vida aos palhaços Dr. Félix Férias e Dr.ª Aurora Benvinda

Lembram-se de alguma história concreta?
FM – Muitas! Há crianças que já nos conhecem e nos esperam animadas, mas outras não. Essas são os nossos desafios, que tentamos ultrapassar de forma criativa. Houve um jovem no Instituto Português de Oncologia (IPO) que só conseguimos conquistar na terceira visita. Chamou-nos e disse que nos queria apresentar o primo, que estava noutro quarto. Estava a brincar connosco! Entretanto ficámos amigos e contou-nos que tinha ficado com medo de palhaços por causa do filme “IT – A coisa”.  

AP – Uma vez conquistei outro menino do IPO lançando-me vezes sem conta contra o armário, enquanto ele ria cada vez mais. Saí de lá todo partido! Passados oito ou dez anos, encontrei-o com a mãe, já era adolescente, e ainda se lembravam da brincadeira. Sentimos que o nosso trabalho realmente faz sentido.

«Trabalhamos com duplas fixas que visitam duas vezes por semana os mesmos hospitais, o que cria uma maior proximidade com os profissionais de saúde e as crianças»
​​
Trabalham sempre em duplas?
AP – A cumplicidade e relação de confiança com o parceiro favorece o trabalho de improvisação e ajuda a criar uma performance adaptada à criança. Por exemplo, usando a técnica do pingue-pongue, em que ora fala um, ora o outro. Sozinhos tendemos a recorrer aos truques de bolso e magias que sabemos que funcionam. Com um parceiro arriscamos mais, enfrentamos o vazio e avançamos em função do que surge no momento. Cada palhaço baseia-se muito na personalidade e nas vulnerabilidades do seu autor. Como o parceiro nos conhece muito bem, sabe como nos tocar para provocar certas emoções, que depois entram no jogo.​


«Como nos filmes da Pixar, a nossa actuação integra vários níveis de humor, para satisfazer todos os que estão no quarto»

São sempre bem recebidos pelos pais e profissionais de saúde?
AP – Como nos filmes da Pixar, a nossa actuação integra vários níveis de humor, para satisfazer todos os que estão no quarto. Interagimos com mães e bebés, crianças, adolescentes e os familiares.  

FM – Trabalhamos em equipa com os profissionais de saúde dentro do hospital, eles são essenciais. Informam-nos sobre as idades e o estado de saúde das crianças e, muitas vezes, participam nas brincadeiras ou são o alvo da nossa actuação. Toda a equipa do hospital entra dentro da nossa magia.  


«A nossa presença não transforma só o momento no quarto, leva uma certa filosofia a todo o hospital»

AP – Temos enfermeiras que trazem músicas preparadas para cantar connosco, às vezes pedem-nos ajuda para distrairmos a criança quando precisam de tirar sangue. Nem sempre funciona! (risos). No Hospital Dona Estefânia havia uma senhora da limpeza que nos adorava e dançava sempre que cantávamos para ela. No IPO há um médico que nos conhece há tantos anos que contracena connosco e depois usa isso com as crianças. A nossa presença não transforma só o momento no quarto, leva uma certa filosofia a todo o hospital.  

Com a pandemia deixaram de poder visitar os hospitais. Como fizeram?
AP – Foi um grande choque, aquele vazio de não sabermos como íamos prosseguir. Começámos por fazer vídeos no YouTube, entre Março e Novembro, para continuar a dar vida ao nosso palhaço e espalhar a nossa arte, sempre com a esperança de que os vídeos chegassem ao hospital. Era a TV ONV. Mas faltava a interacção com a criança. Então reinventámo-nos e criámos o projecto Palhaços na Linha. Foi precisa uma logística de malucos, mas conseguimos montar tudo em pouco tempo, graças ao apoio de patrocinadores.  

FM – Fazemos duas visitas virtuais por semana, em 13 hospitais. Usamos um tablet preso no carrinho de soro, para que não haja toque, que os profissionais de saúde levam até à criança e entramos em contacto com ela à hora combinada. Os resultados são muito positivos. A criança ouve-nos, vê-nos, sente-nos e responde. Conseguimos sentir a resposta dela e criar um jogo. Funciona! Este modelo levou-nos para um lugar de criatividade diferente, permite-nos usar objectos que não seria possível transportar para o hospital, ou criar efeitos com a câmara.  

Será um modelo a usar no futuro?
AP – A nossa intenção é voltar aos hospitais, já regressámos nalguns casos, como o IPO de Lisboa e o Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão. Mas as novas competências podem ter utilidade futura. Os Doutores Palhaços na Holanda têm o seu próprio canal de televisão, por exemplo.  

A instituição a que pertencem, a Operação Nariz Vermelho (ONV), vive do financiamento junto da comunidade. Como é possível apoiar?
AP - Na página www.narizvermelho.pt encontram-se várias formas de ajudar os Doutores Palhaços. É possível fazer pequenas doações regulares, comprar produtos (merchandising) ou doar através da consignação do IRS, que é, actualmente, a maior fonte de receitas da ONV.  

São 25 Doutores Palhaços, no Norte e no Sul do país. Como organizam o trabalho?
FM – Ensaiamos em grupo a cada 15 dias, agora digitalmente. Aprendemos músicas novas, inspiramo-nos mutuamente e isso é importante para criar uma linguagem e uma linha artística comuns, e para fortalecer este músculo. Mas, acima de tudo, enriquece-nos muito o trabalho desenvolvido em dupla.  

O que é mais gratificante no vosso trabalho?
AP – A interacção com as crianças. Os momentos em que somos capazes de transformar o ambiente e vemos brilhar os olhos de uma criança que há pouco estava triste, deitada na cama. É a grande recompensa do nosso trabalho.  

E o mais difícil?
FM – Trabalhar com o colega! (gargalhadas dos dois). Já estamos há muito tempo a falar de coisas sérias…  

AP – O mais complicado é manter a frescura da actuação, preservar a autenticidade. Evitar criar muletas, usando os truques que funcionam sempre. A cristalização é o grande perigo dos artistas.  

Projectos e sonhos futuros. Onde quer a ONV chegar?
FM – O nosso sonho é chegar a todas as crianças hospitalizadas do país. Trabalhamos em 17 hospitais e temos 53 mil encontros com crianças por ano. Mas ainda não chegamos ao Alentejo, ao Algarve, às ilhas. O sonho é manter o que fazemos, mas alcançar mais crianças.​
Cada palhaço baseia-se muito na personalidade e nas vulnerabilidades do seu autor

 

Notícias relacionadas