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22 dezembro 2017
Texto de Paulo Martins Texto de Paulo Martins Fotografia de Pedro Loureiro/Arquivo Fotografia de Pedro Loureiro/Arquivo

O homem da pasta preta

​João Lopes Ribeiro, uma vida cheia de história.

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Talvez tenha aprendido com Phileas Fogg a pontualidade britânica. Ou, quem sabe, foi contagiado pela ânsia de conquistar o mundo, o combustível do herói de Júlio Verne. A leitura compulsiva das obras do clássico francês na biblioteca da Associação de Socorros Mútuos e Instrução Aliança Operária, onde aprendeu a ler, não impeliu João Lopes Ribeiro a dar a volta ao mundo em 80 dias. Pode é ter contribuído para que desse a volta à sua vida. Com a coragem de quem sempre olhou a adversidade de frente. Com muito suor. Com muito trabalho.

O homem que durante mais de duas décadas desempenhou o cargo de secretário-geral da Associação Nacional das Farmácias (ANF) é a discrição em pessoa. Muitos dos que o conheceram na função, inseparável da sua pasta preta, mal suspeitariam que, como em tempos escreveu a revista “FarmAlliance”, era o “chefe da casa das máquinas”, sempre na sombra do “timoneiro”, o presidente João Cordeiro. A história da organização regista momentos em que foi ele quem fez funcionar a engrenagem. Todavia, nunca se pôs em bicos de pés, nunca reivindicou os louros da sua acção.

Lopes Ribeiro, actualmente consultor da Direcção, nasceu em 16 de Julho de 1930, na Rua Aliança Operária, no bairro lisboeta da Ajuda. Entre velhas fotos, rigorosamente organizadas, traça o orgulho das origens. O avô paterno era cordoeiro na Cordoaria Nacional. O materno, guarda-marinha da Armada, fez-se construtor civil, mas a pneumónica roubou-lhe aos 46 anos o usufruto do próspero negócio. Viúva e com três crianças nos braços, a sua mulher teve de desfazer-se da maior parte do vasto património: quase todos os prédios da rua. 



Operário caldeireiro do Arsenal do Alfeite, autodidacta apreciador de ópera e música clássica, o pai de João «sempre foi do contra». No terreno onde germinaram figuras como Bento Gonçalves, secretário-geral do PCP, partilhava agruras com os comunistas, mas nunca deu o passo para a filiação no partido. Na Aliança Operária, de que era dirigente, o filho ganhou conhecimento das letras e deixou-se consumir pelo bichinho do mutualismo. 

«O associativismo marcou-me muito. Foi a forma de os meus pais melhorarem a sua situação», reconhece Lopes Ribeiro, que ainda preside à Mesa da Assembleia Geral da Associação de Socorros Mútuos dos Empregados no Comércio de Lisboa. Em miúdo, acompanhava a mãe, modesta costureira, ao Montepio Geral, para levantar a pensão de sobrevivência do avô. Mais tarde, o pai ofereceu-lhe um mealheiro do banco, onde conserva conta bancária.

Quando entra na Escola Comercial de Ferreira Borges, os canhões percorrem a Europa. E, embora poupado a botas cardadas, Portugal anda racionado no prato e na alma. Aquela é a porta que se abre aos pobres; os ricos seguem para liceus. Não tarda a embrenhar-se na dupla condição que marcaria a sua vida: trabalho e estudo. É já a esfalfar-se numa fábrica de chocolates que, aos 17 anos, fecha este capítulo. E com boas notas, porque é teimoso – ou melhor: «muito teimoso». Na iminência de ficar pendurado na cadeira de Estenografia, atira-se aos livros durante um ano e obtém um 19. Para a nota máxima, «faltou uma vírgula».

Após 11 anos na Lusalite, produtora de fibrocimento onde entrou como moço dos recados e subiu até primeiro escriturário, é contratado pela Alumínio Português (Angola), que instalara uma fábrica em Alcochete. Chega a ter malas feitas para rumar a África – iria chefiar os serviços financeiros da empresa – mas a eclosão da guerra colonial, em 1961, aborta os planos.

Sempre a trabalhar e a estudar, faz as três cadeiras “complementares”, para admissão no Instituto Comercial de Lisboa, na Rua das Chagas. Nem os números – 11 disciplinas, aulas das 8 às 10 horas e das 18h30 à meia-noite – descrevem a dureza da opção. Agravada por um vai e vem de eléctrico, já que para poupar dinheiro vai almoçar a casa. Aos 21 anos, se existia, a margem de recuo evapora-se: o pai morre de cancro do pulmão, sequela dos gases respirados nas caldeiras.

«Experiência curiosa e ao mesmo tempo traumatizante. Não estávamos preparados para a universidade». Lopes Ribeiro faz das fraquezas forças, no Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras. Sabe que é a única opção; se tivesse podido escolher, seria hoje médico. Finanças e Medicina, contudo, nem lhe parecem áreas assim tão diferentes: «Analisei sempre as empresas como se fossem um doente. Têm tudo igual».

Casado aos 25 anos com uma farmacêutica empregada em Alcochete, passa a viver na margem Sul. E a «andar para baixo e para cima de barco», cruzando o Tejo, o que retarda até 1973 a conclusão da licenciatura. Na turma de Ferro Rodrigues e de Vítor Constâncio, não escapa às tensas RGA (reuniões gerais de alunos) da fase derradeira do marcelismo. Acaba por ser aluno de Cavaco Silva e de Manuela Ferreira Leite, assistentes de Finanças Públicas, responsáveis pelas aulas práticas.

Por essa altura, já construíra a ligação ao sector farmacêutico. Literalmente: em 1968, para converter em farmácia uma taberna da Ajuda, viu-se forçado a pegar na pá e no cimento. Estava o improvisado pedreiro a terminar a empreitada quando a mãe, doente, ficou acamada, entregue aos cuidados da sua mulher. Durante seis meses, embora pronta a funcionar, a farmácia manteve-se fechada, graças a uma autorização especial da Direcção-Geral da Saúde.

«Quem me deu a mão – não tínhamos dinheiro – foi o senhor José Miranda, da Sociedade Industrial Farmacêutica. Pedi-lhe que recebesse a mercadoria de volta, se a farmácia não resultasse, prometendo que pagaria o que ele entendesse. Respondeu: "vai ter sorte". Tinha razão: ao fim de seis meses, pagámos tudo». O compromisso sai do pêlo ao casal. Trabalham que nem loucos: no serviço nocturno, de seis em seis dias, comem e dormem na farmácia. Teimoso ou homem de honra? As duas qualidades, por certo.

As dificuldades de abastecimento conduzem-no em 1973 ao grupo fundador da Codifar, cuja primeira Direcção integra. Criada para contornar o facto de a União dos Farmacêuticos não admitir novos sócios, a cooperativa reúne dirigentes do Grémio, como Medeiros de Almeida, António Macedo, João Matos e Maria do Castelo. Alguns virão a assegurar a transição para a ANF. A Codifar expande-se e chega a ultrapassar a União.

Mas não vinga a sua proposta de transformação em sociedade anónima. «Se tivesse avançado, possivelmente hoje teríamos uma grande empresa distribuidora».

Na tempestade pós-revolucionária, mantém-se sereno. Membro da comissão de trabalhadores da Alumínio, empresa dominada por gente com fortes laços ao regime deposto, consegue travar «problemas». Não evita, porém, o sopro basista dos ventos políticos: é o único membro do Sindicato dos Empregados de Escritório expulso por ter tirado um curso superior.



Em representação da mulher, participa em 1975 na Assembleia do Grémio, em Coimbra, que abre caminho à ANF. Ajuda à ponte entre os jovens do “Grupo de Cascais”, onde pontificam João Cordeiro, Luís Teodoro e João Silveira, e os veteranos João Matos, Medeiros de Almeida e Eurico Pais. Convidado para secretário-geral, só aceita à segunda tentativa. Quer evitar más interpretações de Vale de Andrade, que exerce o cargo, embora não formalmente. As reservas são removidas quando este último lhe dá conta da vontade de se retirar.

Um financeiro entre farmacêuticos. Como enfrentou o desafio? «Sendo igual a mim próprio. Nunca mudei», afiança. Deixará a sua marca nos mais delicados dossiês. A primeira batata quente, aliás, chega-lhe às mãos quando ainda é consultor, serviço que presta durante dois anos a título gracioso. Trata-se da mecanização, um ponto final no tormentoso processamento manual do receituário das farmácias. O nó é desatado graças aos seus contactos privilegiados. O pulo tecnológico desperta inveja. «A Associação arrastou o Ministério da Saúde. Tanto que se viu obrigado a criar um departamento informático, para não ser ultrapassado». 

Na fase de afirmação da ANF, toca todos os instrumentos, do processo de consolidação da organização interna, via estrutura associativa, ao nascente Difarma. O departamento é o terreno de reflexão sobre o papel do farmacêutico no circuito do medicamento. A prioridade à vertente profissional, ajuíza o antigo secretário--geral, torna-se a chave do sucesso da Associação. «O farmacêutico tem de fazer todo o esforço para demonstrar que está ligado à saúde. Estando ligado à saúde, tem de se afastar da parte comercial».

Entusiasmado de novo com o associativismo, participa em 1985, com colegas da área financeira, na fundação do Montepio Nacional das Farmácias, a mútua do sector. E faz parte do grupo que lança a Codipor, hoje GS1 Portugal, entidade que se revelaria decisiva na codificação de medicamentos. A ANF foi a primeira organização a nível europeu a preconizar a aposição de um código de barras nos medicamentos.

O acordo com o Ministério da Saúde para fornecimento de medicamentos, que em 1988 centraliza na Associação os pagamentos às farmácias, também conta com o empenho de Lopes Ribeiro. A ministra Leonor Beleza torna-se aliada na batalha dos genéricos, que conquistaram mercado e estão hoje ao preço da chuva. Não jogou a ANF contra o negócio farmacêutico? «Se não houvesse genéricos, onde estava o Serviço Nacional de Saúde? E onde estariam as farmácias se não houvesse Serviço Nacional de Saúde?». Respondendo à pergunta com perguntas, induz a conclusão: não sobravam alternativas. Prevaleceu uma visão sistémica da questão, incompatível com vistas curtas, em defesa da dama.

Sem virar costas à profissão de origem, Lopes Ribeiro abraça em 1995 outro projecto: o 1.º Congresso dos Técnicos Oficiais de Contas, que lança a associação dos TOC, embrião da Ordem dos Contabilistas Certificados. Cinco anos depois, quando pela primeira vez atribui insígnias, a ANF inclui o seu nome, reconhecendo anos de dedicação. Em 2002, não pode furtar-se ao envolvimento na guerra das farmácias sociais. Custa-lhe que do outro lado da barricada esteja o ex-colega Ferro Rodrigues, que mal assume a liderança do PS propõe a criação de 100 unidades ligadas a entidades sem fins lucrativos.

«Devemos saber sair do teatro quando já não podemos representar», afirma Lopes Ribeiro. Paulo Cleto Duarte, seu adjunto, é chamado a substituí-lo como secretário-geral. Lopes Ribeiro reprime «saudades das pessoas» e lida bem com a nova fase da vida: Passou a pasta institucional, é certo, mas conserva a sua. Deve guardar mil segredos…
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