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18 novembro 2017
Texto de Paulo Martins Texto de Paulo Martins

Política na massa do sangue

​​​​Estórias do 25 de Abril e do 25 de Novembro, com raízes na crise académica de 1969.

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​«Não sou do PSD. Sou uma pessoa de esquerda. Não quero que haja equívocos». Curto e seco, o esclarecimento foi dirigido ao ministro da Saúde, quando em 1990 convidou Aranda da Silva para director-geral dos Assuntos Farmacêuticos. Arlindo de Carvalho não se atrapalhou: o indigitado até já estivera nas cogitações de Leonor Beleza, anterior titular do cargo. Não repugnava ao Governo de Cavaco Silva nomear gente estranha ao partido… desde que não fosse militante do PS. Não era o caso. Aranda nunca foi militante de partidos, excepto na juventude, seduzido pelo clandestino PCP. Mas nesse momento até o seu amigo Edgar Correia, destacado comunista já falecido, o aconselhou a aceitar a função.

Muito activo no movimento estudantil de Coimbra, onde viveu numa “república” de angolanos nacionalistas – alguns dos quais seriam mortos em 1977, no âmbito da impiedosa reacção ao golpe de Nito Alves – Aranda da Silva fez desporto, subiu aos palcos em peças do Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra, envolveu-se no cineclube. Também se agarrava às sebentas, é certo, mas q.b. «Dava tempo para tudo. Só começávamos a estudar em Maio».

É no Porto que desponta a veia de dirigente estudantil, cúmplice da crise académica que assolou a cidade do Mondego, em 1969. Presidente da Associação de Estudantes da Faculdade de Farmácia, a única legal, tornou-se secretário-geral da Reunião Inter-Escolas do Porto. Dirigiu plenários de megafone em punho, muitas vezes ao lado de Helena Medina, mãe do actual presidente da Câmara de Lisboa, de cujo casamento com Edgar Correia foi padrinho. 

Quase 40 anos volvidos, recorda estórias como a de um cerco policial. No meio da tensa situação, percebeu quão perigoso seria esticar a corda. Negociar era a única opção, não fossem os bastões erguer-se, sem olhar a alvos. Lá conseguiu ir de ramona, com dois colegas, falar com o ministro da Educação, José Hermano Saraiva. Com a garantia de saída dos agentes, comprometeu-se a assegurar que os estudantes dispersariam. Embora relutantes, cumpriram. Tudo acabou em bem, até à refrega seguinte. 

A faculdade funcionava como uma das bases logísticas da rebelião conimbricense – «tínhamos um copiógrafo escondido, onde foi produzida grande parte dos comunicados». Um dia, Veiga Simão, que viria a suceder a José Hermano Saraiva, lamentou junto de Elísio, pai de Aranda da Silva, que o carro que oferecera ao filho fosse usado para transportar material subversivo. «Ainda bem. Está a dar-lhe bom uso», respondeu o amigo, sem pestanejar.

A 25 de Abril de 1974, Aranda da Silva está no Hospital Militar, «com a malta toda da crise de Coimbra que tinha sido expulsa da universidade, como o [Rui] Pato e o [Rui] Namorado». No Verão do “ano zero” da democracia portuguesa, já transferido do Exército para a Força Aérea, o jovem oficial miliciano de 22 anos goza então de enorme popularidade. Eleito para a Assembleia do MFA, é requisitado para a 5.ª Divisão do Estado-Maior General. Participa em programas de rádio, produzidos em estúdios modernaços na Rua das Janelas Verdes, em Lisboa, património do extinto Movimento Nacional Feminino. Escreve no boletim informativo das Forças Armadas, que distribui 300 mil exemplares plenos de fervor revolucionário – «a reacção não passará», porque «o povo está com o MFA».

É neste contexto que faz valer a experiência política como dirigente associativo e testa a sua proverbial capacidade de gerar consensos. O amigo Loureiro dos Santos, hoje general, topa-lhe a táctica. Dizia que «tinha muita conversa, mas convencia sempre». Tal perfil dificilmente encaixa na ideia enraizada de que na 5.ª Divisão se acoitava um bando de radicais. Aranda admite que, quando Varela Gomes a dirigiu, foi tudo menos moderada, mas prefere salientar a vertente de dinamização cultural, em acções desenvolvidas um pouco por todo o país. 

O certo é que, quando após o 25 de Novembro de 1975 foi parar ao Laboratório Militar, a fama ainda lhe estava colada à pele. Era olhado como radical pelos camaradas de armas mais conservadores – «a malta tinha muito medo de mim». Está convicto de que foi para o afastarem que o desafiaram a assumir a responsabilidade de criar a carreira de Farmácia Hospitalar, que não existia nas Forças Armadas. Não se negou. E até viu satisfeito o requisito que impôs, de fazer formação.

A costela de intervenção cívica não se perdeu. Desde 2008, preside à Direcção da Cooperativa Cultural Outro Modo, que edita em Portugal o “Le Monde Diplomatique”. Em 2015, integrou como independente as listas do Livre/Tempo de Avançar às legislativas, depois de ter disputado as eleições primárias promovidas pelo partido. A política na massa do sangue…
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