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20 novembro 2017
Texto de Paulo Martins Texto de Paulo Martins

Honoris Causa de causas concretas

​​​​​​​​​​Um olhar analítico ao primeiro presidente do Infarmed. 

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​​Procura sempre ir até ao limite que as circunstâncias permitem», atesta Jorge Gonçalves. «É um fazedor. Não descansa enquanto não deixa pegada», acrescenta José Sousa Lobo. O retrato cruzado que os dois catedráticos da Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto esboçam de Aranda da Silva pode ter sido influenciado pelo contexto, a cerimónia de atribuição do doutoramento honoris causa, a 3 de Outubro. Porém, não deixa de evidenciar os traços identificadores da longa carreira do homenageado: obstinação e pragmatismo. «Nunca desisto. É uma questão educacional. Quando uma pessoa sabe o que quer, tem objectivos e está convencido de que tem razão, faz tudo até ao fim. Pode demorar tempo: o Infarmed só ao fim de dez anos ficou como eu quis», afirma o próprio.

Embora impute à sorte o seu currículo – «não lutei pela maior parte dos cargos que exerci» – o antigo presidente da entidade reguladora sabe que a persistência é um medicamento milagroso. Ainda mais se ministrada com uma boa dose de persuasão: «Toda a minha vida foi de procura de consensos. Sempre tive a capacidade de convencer as pessoas». A família, já se sabe, ajuda a moldar personalidades. Mas o que destaca é a influência de professores do Liceu Salazar, em Lourenço Marques (hoje Maputo, Moçambique), onde nasceu em 1948. «Tipos fora de série», como Cansado Gonçalves, Cardigos dos Reis ou Rodrigues Martins.

Licenciado em Farmácia pela Universidade do Porto, em 1972, o novo doutor honoris causa puxou na sessão solene pelas memórias mais impressivas desse vínculo. Por um lado, os plenários estudantis de desafio à ditadura, que dirigia no átrio da reitoria. Por outro, os mestres – Correia da Silva, Joaquim Polónia, Nogueira Prista e, sobretudo, Aluísio Marques Leal, de quem se diz «uma espécie de filho adoptivo». Viria a ser assistente dele em Lisboa, antes de seguir percurso académico próprio, e acompanhou-o até à morte, em 2016.

José António Aranda da Silva protagoniza, na família, a quarta geração de farmacêuticos, originários da região de Soure. O avô instalou-se em Moçambique no final do século XIX; o pai deu combustível ao empreendedorismo em terras africanas. Contra a vontade deste, decidiu estudar na chamada Metrópole. “Oficialmente”, o pai reservava-lhe um lugar de engenheiro químico numa unidade de indústria farmacêutica, projectada em parceria com a Sharp & Dohme. Na realidade, não queria que partisse. Rendeu-se à determinação do filho.​

A passagem por Coimbra, claro, não se esgota no estudo. Mete aventuras culturais e desportivas, até políticas. Bom treino dos dotes de liderança que exercitará no Porto, cuja academia está em ebulição, à cabeça da Associação de Estudantes da Faculdade de Farmácia e como secretário-geral da Reunião Inter-Escolas (RIE).

No final de 1973, já com canudo e pós-graduado em Análises Clínicas, segue para a tropa, em Mafra. Mal o regime marcelista desaba, o Exército “entrega-o” à Força Aérea. Pouco dado a passar pelos pingos da chuva sem ser notado, o jovem oficial miliciano é eleito para a Assembleia do MFA e requisitado para a famosa 5.ª Divisão. Há-de entrar para o quadro permanente do Exército, em concurso público. Tão a sério leva a preparação para as exigentes provas, durante um ano, que alcança o primeiro lugar. Destacado para o Laboratório Militar, aceita a proposta de criar a carreira de Farmácia Hospitalar nas Forças Armadas. Única condição: cumprir um programa formativo. Após internato no Hospital de Santa Maria, vai para o Hammersmith Hospital, em Londres, e depois para o Hospital de la Santa Cruz y San Pablo, em Barcelona. «Tinha 26 anos e fui estudar durante dois. Toda a minha carreira foi muito marcada por esse período», admite.

A impressão digital que deixou no universo castrense é bem mais profunda. Jorge Gonçalves, a   quem coube o elogio na cerimónia de doutoramento, sublinhou o seu papel na reestruturação dos serviços farmacêuticos militares, impelida pelo fim da guerra colonial, a implementação do uso do Formulário Nacional de Medicamentos no Hospital Militar Principal e a criação da primeira Comissão de Farmácia e Terapêutica do estabelecimento de saúde.



A primeira função pública “civil” que Aranda da Silva desempenha, entre 1990 e 1993, é de director-geral dos Assuntos Farmacêuticos. Apanhado de surpresa pelo convite, pede 15 dias para reflectir. Amigos como João Silveira, da Direcção da ANF, incentivam-no a avançar. Nas mãos do ministro da Saúde, Arlindo de Carvalho, deposita um documento, curto mas focado, como se de um caderno reivindicativo se tratasse: defende a conversão da direção-geral em instituto público e a criação de um laboratório de controlo de qualidade de medicamentos, com vista ao desenvolvimento do mercado de genéricos.

«Perfeitamente anacrónica»: eis como descreve a direcção-geral. Instalações dispersas e quadro de pessoal desmotivado são a face negra de um organismo cujos serviços de inspecção se reduziam a um funcionário. O salário, longe de generoso, não lhe rouba entusiasmo. Para suprir a falta de peritos, apoia-se nas faculdades. Não corta cabeças, nem toma atitudes drásticas, mas vai levando a água ao seu moinho.

Em 1993, emerge a oportunidade de fundar o Infarmed, cujo financiamento é assegurado através da taxa que revertia a favor da Comissão Reguladora dos Produtos Químicos e Farmacêuticos. Perante a relutância do ministro, toma a iniciativa de desbloquear um dossiê potencialmente controverso, fazendo a ponte com os partidos da oposição. Envolve o socialista Correia de Campos, o comunista Edgar Correia e Maria José Nogueira Pinto, do CDS. O Parlamento acaba por autorizar a incorporação no Orçamento do Estado da transferência do valor das taxas para o instituto.

Primeiro presidente do Infarmed, Aranda lida até 2000 com quatro ministros e 13 secretários de Estado. Vence reservas quanto à utilidade do organismo, nascido no mesmo ano da Agência Europeia do Medicamento, pela qual a presidência portuguesa da União Europeia de 1992 se batera, mas que não reunia o consenso dos Estados-Membros. Reconhece-se hoje que pôs o Infarmed no mapa, sendo o principal responsável pela robustez e credibilidade do sistema regulamentar do medicamento.

O passo seguinte é a Ordem dos Farmacêuticos. Conta que foram jovens como Paulo Cleto Duarte, então secretário-geral do organismo e actual presidente da ANF, que o desafiaram a candidatar-se a bastonário. Eleito por altura da entrada em vigor dos novos Estatutos da Ordem, elege três objectivos. A criação de um sistema de acreditação da formação pelas faculdades «foi fácil, porque tratava por tu a geração que estava no poder». A acreditação da profissão, fazendo depender a renovação da carteira de formação contínua, não enfrentou obstáculos. Menos consensual se revelou a terceira meta. Tratava-se do que designa por «desmaterialização do acto farmacêutico», que valoriza a prestação de serviços. Não a concretizou, mas a ideia ficou a pairar, estando hoje na ordem do dia.



«Tinha o tempo certinho para passar à reserva», com a patente de coronel farmacêutico, quando em 2006 tomou essa decisão. Só não passou à reserva na área farmacêutica. A sua opinião continua a ser ouvida – como presidente da INODES (Associação de Inovação e Desenvolvimento da Saúde Pública), membro do Observatório Português dos Sistemas de Saúde e da Administração da Fundação Saúde SNS. O registo científico, reserva-o para a Revista Portuguesa de Farmacoterapia. Única publicação científica da área da Farmácia, indexada e com avaliação por pares, é um projecto da sua lavra, que lançou em 2009 e continua a dirigir.
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