O betão, cortado pelo verde de árvores pequenas, domina a rua larga do Vale da Amoreira. Aqui se concentram os serviços do bairro: a junta de freguesia, os CTT, o gabinete do Rendimento Social de Inserção (RSI), o Balcão do Munícipe, a farmácia e a escola. De quando em quando, passa um carro com música aos berros ou uma viatura da PSP em marcha lenta.
A polícia anda muito por aqui, mas não se sente insegurança. Vê-se roupa estendida nos varais dos rés-do-chão de grandes prédios tingidos a um branco já desbotado, a pedir pintura. Há gente sentada nos cafés, nos muretes dos prédios, na paragem do autocarro. Crianças pequenas regressam sozinhas da escola à hora do almoço, cães dormitam nos passeios. Sente-se sossego no ar, como se o Vale da Amoreira fosse uma aldeia e não um bairro social na Moita, na margem Sul do Tejo.
Nas suas origens, esta aldeia suburbana reuniu trabalhadores da cintura industrial de Lisboa e gente das ex-colónias. Com o passar do tempo, tornou-se um bairro multicultural, onde hoje coabitam cabo-verdianos, angolanos, alguns moçambicanos, guineenses, portugueses, bastantes de etnia cigana, e, mais recentemente, brasileiros. Os empregos precários não deixam, por isso, de dar identidade a diversos grupos. Os “tendeiros” vendem roupa nas feiras. Já os que andam na apanha ilegal da ameijoa diz-se que “vivem da maré”.
Do bairro emergiram atletas como Liliana Cá, quinto lugar no lançamento do peso nos Jogos Olímpicos de Tóquio, ou Neemias Queta, o primeiro português a chegar à NBA. Mas são a excepção. É difícil escapar às altas taxas de insucesso e abandono escolar, ao desemprego, ao tráfico de droga. Assim como a tradições arcaicas, que resultam em muitas gravidezes aos 12 ou 14 anos, e casos de mutilação genital feminina.
As instituições da rua larga são um exemplo de articulação para responder aos problemas do bairro. «Se alguém está ilegal e não tem dinheiro para os medicamentos, entre nós e a extensão de saúde arranjamos uma solução», garante a directora-técnica da Farmácia do Vale. Teresa Ribeiro nasceu numa família de farmacêuticos com honra na profissão. Aprendeu com o avô, «farmacêutico antigo que fazia tudo», a ser um anjo-da-guarda no bairro. «A minha prioridade é ajudar a mudar a vida das pessoas», resume.
«Não vimos só comprar medicamentos, vimos conversar», elucida Maria do Céu Matos
À porta da farmácia, à sombra de uma tília, um grupo de utentes passa o tempo em amena cavaqueira. É habitual este ambiente de tertúlia. «Não vimos só comprar medicamentos, vimos conversar», elucida Maria do Céu Matos. Moradora no bairro há 40 anos, veio fazer o teste à COVID-19 para despistar sintomas suspeitos, embora esteja vacinada. Não era nada. Antes fazer aqui o teste do que em qualquer outro lado: «é como sendo família, estamos à-vontade».
A Farmácia do Vale fez para cima de 5.000 Testes Rápidos de Antigénio (TRAg) desde meados de Dezembro. Foi das primeiras farmácias a aderir no distrito de Setúbal. No início, recebia pessoas da Moita, Montijo e Setúbal. A equipa cedo aprendeu a encarar a pandemia de frente. Muitas pessoas caíam prostradas ao balcão da farmácia, relutantes em recorrer ao centro de saúde. «Tivemos famílias inteiras infectadas, incluindo recém-nascidos, famílias com 20 pessoas», relata a farmacêutica.
No Vale da Amoreira, a propagação foi vertiginosa. Na fase mais aguda, a freguesia registou o recorde de casos de COVID-19 do concelho da Moita. «Em Abril de 2020 era normal ter 20 a 30 casos por dia, em Junho passado eram 30 a 40, numa população de 15 mil pessoas», avança Nuno Cavaco, presidente da junta da União das Freguesias de Baixa da Banheira e Vale da Amoreira.
No primeiro confinamento, no sábado seguinte ao encerramento das escolas, a fila para a farmácia dava a volta à esquina. Foi preciso acalmar a população, aconselhar medidas de protecção e produzir álcool gel, até para abastecer o centro de saúde, que acabou por fechar as portas. No pico do pânico, a farmácia era o único serviço de saúde do bairro. «Havia a linha SNS24, mas como do SNS24 não atendiam, toda a gente vinha dar à farmácia», relata Teresa Ribeiro.
A médica de família de Florbela está de baixa, por isso ela procura mais a farmácia
Para as pessoas poderem confinar em casa, a farmacêutica e uma ajudante atravessam o bairro para entregar medicação. Os domicílios foram reforçados e a tendência veio para ficar. Florbela Boaventura, por exemplo, pediu ajuda para os vómitos que a assolam há uma semana. Mãe de sete filhos, tem problemas na coluna, epilepsia, falta de ar, dores no estômago. O que mais a apoquenta é ver o marido, asmático, com oxigénio 24 horas por dia, a definhar na casa húmida, onde a «água corre pelas paredes». A médica de família está de baixa, pedir consulta é estar «muito tempo à espera». Por isso, Florbela recorre à farmácia. «Peço sempre conselhos à doutora, confio nela, é impecável comigo. E eu com ela. Nunca fiquei a dever nada, mesmo pobre sou certinha», ri-se.
A farmacêutica e uma ajudante atravessam o bairro para entregar medicação
A Farmácia do Vale também começou a dispensar medicamentos aos doentes transplantados, evitando viagens e deslocações desnecessárias aos hospitais. A Operação Luz Verde, a que as farmácias aderiram sem cobrar um cêntimo, foi um alívio, sobretudo para os mais pobres. Uma mãe guineense agradeceu com lágrimas nos olhos quando soube que podia levantar na farmácia o medicamento para a filha. «Para chegar ao Hospital Dona Estefânia tenho de apanhar não sei quantos autocarros», disse à farmacêutica.
A equipa da farmácia desdobra-se em trabalho, facto bem reconhecido pela comunidade, que retribui com tudo o que tem. «Todos os dias trazem sacos com bolinhos, ovos, batatas, cebolas, para nos agradecerem», comove-se a farmacêutica. Um bairro assim não é para todos, e talvez por isso seja tão elevada a rotação de médicos no centro de saúde. Como diz a farmacêutica, «primeiro estranha-se, depois entranha-se». Entranhou-se na equipa da farmácia – duas ajudantes de farmácia, duas técnicas auxiliares de farmácia, a farmacêutica e o marido, que assume funções administrativas.
Teresa viu-se a trabalhar diariamente entre as oito e as 21 horas. As colaboradoras também «entravam, sem hora de saída». Está-lhes grata.
No primeiro confinamento, as cinco mulheres improvisaram uma creche no escritório da farmácia. Contrataram uma pessoa para trazer os almoços e fazer as compras de todas. Iam a casa para tomar banho e dormir. Teresa Ribeiro só sentiu o burnout no segundo confinamento e resolveu-o com uma dose extra de optimismo. «Quando estou em baixo, ouço música, penso nos meus filhos e em como sou privilegiada por fazer o que gosto», afirma a farmacêutica, que faz parte de uma tuna académica.
«Não me querem à porta, querem-me mesmo dentro da farmácia», afirma Tcherno Bokar Seide
«Fazem um trabalho fantástico», garante o presidente da junta, e lembra o apoio que a Farmácia do Vale deu no processo de vacinação contra a COVID-19, ajudando a actualizar as fichas de utentes do centro de saúde e aconselhando os renitentes a vacinarem-se. «Têm sempre esta postura de ajudar, comunicar». O guineense Tcherno Bokar Seide concorda: «Não me querem à porta, querem-me mesmo lá dentro».
O centro de tudo
Na farmácia do bairro do Vale da Amoreira há de tudo: vacinação e administração de injectáveis, fisioterapia e massagens, medição de parâmetros bioquímicos, preparação individualizada da medicação (PIM), troca de seringas, acompanhamento farmacoterapêutico, ervanária e dietética, homeopatia, ortopedia e ajudas técnicas, furação de orelhas e piercings. Esta diversidade de serviços reforça os laços de confiança.
A farmácia dá apoio a emergências, participa em rastreios e em projectos de acção escolar. Teresa Ribeiro deposita muita esperança nas experiências com as escolas, em que os alunos experimentam vestir uma bata de farmacêutico e são introduzidos nos valores da profissão. «Se, entre 20, um deles chegar à faculdade em vez de ir trabalhar num supermercado, é uma vitória».
No primeiro andar do edifício, há prateleiras com roupa, sapatos, livros, produtos de higiene, às vezes carrinhos de bebé e berços, para distribuir por quem precisa. Quando o
projecto de apoio social da Associação de Amigos do Vale da Amoreira fechou as portas, a farmacêutica decidiu dar-lhe continuidade.
«Não posso mudar o mundo, mas posso mudar um grão», acredita a farmacêutica Teresa Ribeiro
A equipa lê cartas a quem não sabe ler, ajuda as crianças a fazer os trabalhos para casa e muitas mulheres a organizar os orçamentos familiares. Teresa aproveita cada oportunidade para passar mensagens sobre educação sexual. Quando lhe aparecem ao balcão crianças de 13 anos de etnia cigana, explica-lhes os malefícios de uma gravidez precoce. Quando as mulheres pedem pílulas, às escondidas dos maridos, não hesita em vender. Na farmácia é mais fácil, o centro de saúde exige registo. Teresa acredita na farmácia como porta de emancipação da comunidade. Como ela diz, «não posso mudar o mundo, mas posso mudar um grão».