A doença chegou de noite, como um ladrão. «Estava na cama, com a cabeça deitada na almofada, e comecei a sentir que a minha cabeça andava para trás». Lúcia Curto demorou a processar o que estava a acontecer: o corpo mexia-se, num movimento subtil, mas involuntário, contrário às ordens que o cérebro lhe enviava. Sentou-se na beira do colchão, procurou entender. «Eu punha assim a mão, à frente do nariz», gesticula, «para ver se realmente era verdade, e era: eu não conseguia controlar os movimentos da cabeça».
Já passaram sete anos desde o aparecimento dos primeiros sintomas, mas os detalhes daquela noite de 2015 ainda estão frescos na memória de Lúcia. Tinha, à data, 57 anos, um emprego como cozinheira num centro de dia, uma vida preenchida nos tempos livres. «Sempre gostei muito de jardinagem, horta, essas coisas. E dos bailaricos... Adorava», recorda. Ficou tudo em suspenso, à medida que a um movimento incontrolado se seguiu outro, e mais outro, e outro mais, numa repetição cada vez mais dolorosa.
Foram necessárias várias semanas até se chegar a um diagnóstico: distonia crânio-cervical, termo clínico para descrever uma condição neurológica que provoca contrações musculares inconscientes de longa duração. No caso de Lúcia, as contrações surgiram na zona do pescoço. Começou a ser acompanhada no hospital de Viana do Castelo, depois foi transferida para Braga, sem que tenha sido identificada a causa da distonia. Os primeiros tratamentos não revelaram eficácia e logo surgiram movimentos involuntários noutras zonas do corpo, a progressão da doença sinónima de uma dor física cada vez mais difícil de suportar e de um estado psicológico gradualmente fragilizado. «Quando estive internada em Braga, não tinha noção de nada. Tinham de dar-me a comida à boca. Quando me punham a algália, eu tirava-a. Tornei-me insuportável para as outras pessoas, ninguém me reconhecia», relembra, envergonhada.
«Estava na cama, com a cabeça deitada na almofada, e comecei a sentir que a minha cabeça andava para trás»
«Quando saí de lá, não conseguia andar, não me conseguia segurar, saí agarrada à minha filha. Quando o médico me deu alta, ele disse-lhe: “Pode arranjar um lar para meter a sua mãe, porque isto não vai melhorar”». Lúcia foi-se abaixo. «Era uma pessoa que antes gostava de me vestir bem, de andar bem arranjada, mas perdi tudo». A voz treme quando recorda o batizado do neto, que fez agora oito anos. «Eu não fui. Tinha muitas dores, fiquei de cama o dia todo».
Acabou amparada pelos filhos, quatro, todos emigrados em França, que, à distância ou através de viagens frequentes ao Alto Minho, «procuraram as soluções todas, fizeram tudo o que podiam por mim. Acho que se não fossem eles eu hoje não estava aqui. Entregava-me à dor, arrumava-me a um canto e pronto».
Não o fez. Encontrou «um médico da dor» em Ponte de Lima, que prescreveu uma combinação certeira de fisioterapia e medicação, que, lentamente, permitiu a Lúcia reaver o domínio do corpo que lhe tinha sido roubado pela doença. Seis meses depois dos primeiros sintomas, derrotou os movimentos involuntários da cabeça. No espaço de dois anos, e depois de alguns ajustes à terapêutica, reduziu ao mínimo as contrações musculares no resto do corpo. «Toxina botulínica», enuncia, referindo-se ao tratamento que ganhou fama na medicina estética sob o nome botox e cujo efeito paralisante localizado tem sido determinante na gestão dos sintomas da doença de Lúcia. «Debaixo da omoplata do lado direito, fiz tratamento apenas uma vez e nunca mais tive dor. Ali, naquele sítio, nunca mais senti dor». Pequena vitória.
O controlo da distonia significou também uma nova adjetivação da dor crónica, de incapacitante para gerível, e essa mudança deu a Lúcia uma perspetiva rejuvenescida sobre a vida e sobre a doença. «Eu sou muito teimosa. Posso tentar fazer hoje um trabalho e, se não conseguir, tento amanhã, tento uma terceira e uma quarta vez. Mas tenho de conseguir». Obstinação: é também à força da força de vontade que vai ultrapassando os percalços da recuperação. Voltou a conduzir, depois de três anos sem se sentar ao volante de um automóvel. Voltou às suas plantas, à sua horta, a pôr as mãos na terra. Voltou a ser um pouco mais de si. «Já experimentei vários dias não fazer quase nada, só a minha comida e a minha higiene, e noutros andar no meu dia a dia, a tratar dos animais, a limpar os terrenos, essas coisas... À noite pode doer-me mais um bocadinho, mas no outro dia, de manhã, estou pronta outra vez».
O controlo dos movimentos permitiu recuperar o hobby da jardinagem.
A doença não desapareceu. Ainda lá está, latente, pronta a limitar-lhe a vida se houver lapsos na medicação ou falhas na fisioterapia. Lúcia não esquece, nem se ilude. «Se a minha fisioterapeuta for de férias 15 dias, tem logo um impacto enorme», admite. «E na fase final dos efeitos do botox [três meses, em média], começo com movimentos involuntários nos olhos, a pálpebra a descer». Até mesmo quando cumpre o plano de tratamento à risca, há dias menos bons. Sempre que Lúcia se esquece da sua condição e faz mais do que aquilo que o corpo tolera, a dor regressa para a lembrar de que o agora é diferente do antes. Mas, quando isso acontece, quando os músculos contraem sem aviso e a dor se torna novamente mais intensa, a Lúcia que reage não é a que se sentou, confusa, na berma da cama em 2015, nem a que precisou de suporte para sair do hospital umas semanas depois, nem tão-pouco a que, nos meses seguintes, perdeu dias inteiros na cama, sequestrada pela dor. É alguém que vive com a certeza de que amanhã o dia pode correr melhor.
«É importante não pensarmos que seria melhor estarmos arrumados a um canto do que no meio da nossa família, no seio de quem nos quer bem. Acho que não é bom para nós nem para eles. Ajuda muito a levantar», conclui. Mas a grande mudança, assume, é que «a dor não me obriga a parar, por muito forte que seja, já não me obriga a parar».