Quando começou, podemos dizer que Rão Kyao era um músico de jazz, muito ligado ao saxofone.
No meu primeiro disco [“Malpertuis”, de 1976] já tenho uma coisa com a flauta de bambu. Digamos que a flauta de bambu sempre foi para mim o instrumento da intimidade. Tocava saxofone no meu grupo, mas a flauta era o instrumento da intimidade.
Em 1978, parte para a Índia. O que lhe deu para ficar por lá um ano a aprender música?
Fui convidado para ir tocar à Índia, ao Festival Internacional de Jazz Yatra, em Bombaim. “Yatra” quer dizer peregrinação, era a peregrinação do jazz. Um festival muito interessante. E eu, sempre com as minhas canas, já fui para lá com esta ideia: «Eu tenho de aprofundar o estudo deste instrumento».
Como conseguiu?
O sistema de aprendizagem na Índia é mestre/aluno. Agora já há mais escolas, mas é mais de mestre para aluno. E uns amigos goeses, o Aníbal Castro, o Bosco, o Ronnie Monserrate, apresentaram-me a Raghunath Seth, um músico ilustre, um flautista extraordinário. Ele pediu-me para eu tocar. Eu toquei um bocado e ele disse que me tomava como aluno. Então, comecei a estudar flauta de bambu, música indiana também, música vocal. Tudo o que se relaciona com a música indiana, que sempre me fascinou. Fiquei lá e, a partir daí, dediquei-me mais profundamente a este instrumento extraordinário, que é flauta de bambu.
Essa relação mestre/aluno esgotava-se na música ou tinha outras dimensões?
Tinha, sim. É muito estranho, porque é uma coisa à qual a gente não está habituada. Nós cá marcamos uma consulta, pagas a tua hora, e a hora começa e acaba. Falamos sobre aquilo a que nos propusemos, aquilo por que que tu pagaste. Com ele não era assim. Começávamos a falar de várias coisas: «Então, não sei quê, onde é que andas, não sei quantos». E, às tantas, estamos naquilo há meia-hora. De repente, ele dizia: «Pega na flauta, toca isto». O tempo era fraccionado segundo a vontade dele. Num certo dia, por exemplo, estávamos duas horas seguidas a tocar. Não era sistemático.
Iam para além da música?
Há aquele ensinamento que se insinua. Tu não sabes muito bem, mas estás constantemente a aprender. Só que é de uma maneira endémica, não é objectivamente. É o ensinamento que se torna muito profundo, é baseado na escuta, numa certa filosofia que se apreende. Mas houve um dia em que recebi um banho de música dele. Foi uma catadupa de coisas que me ficaram e me ensinaram muito. Foi uma aula especialmente produtiva, foi num comboio Lisboa-Porto. Alguém acredita nisto? Ele deu-lhe para ali. E nesse momento, dentro do campo objectivo da música e do tocar, ensinou-me mais do que se calhar numa série de aulas nas circunstâncias normais.
Numa viagem Lisboa-Porto?
Lisboa-Porto. Ele veio cá.
Havia outros passageiros?
Sim, mas não havia muita gente. A conversa surgiu e pronto. Ele estava com aquela bolha e passou-me isso. Isto para dizer que é sempre em ocasiões que não se está à espera. Não é sistemática esta relação com o mestre, da maneira como eu a tive.