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9 março 2020
Texto de Marta Rodrigues Texto de Marta Rodrigues Fotografia de Luís Silva Campos Fotografia de Luís Silva Campos

Linhas da frente

​​​​​​​Nas costas do Cristo Rei, tão perto de Lisboa, há mundo rural, com os seus problemas e virtudes.

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Farmácia Vale Fetal - Charneca da Caparica e Sobreda, Almada

A cerca de 17 quilómetros de Lisboa encontra-se a pequena localidade de Vale Fetal, pertencente à freguesia de Charneca de Caparica e Sobreda, em Almada. Engana-se quem associa a proximidade da capital a uma zona urbana ou “Caparica” a um destino de férias. Estamos num meio rural. Vivendas baixas, terrenos para agricultura e produção animal para consumo próprio.

A comunidade que aqui vive é envelhecida, com problemas de saúde que caminham de mãos dadas com a idade. A abertura da Farmácia Vale Fetal, em Abril de 2004, tranquilizou a população. Desde então, as angústias discutem-se em primeiro lugar na farmácia. Para além dos medicamentos, a farmácia disponibiliza consultas de nutrição, podologia e serviço de vacinação. Os utentes usam a gratidão no rosto e a equipa é já uma «família».

De sorriso nos lábios, a directora-técnica e proprietária, Helena Pires, cumprimenta todas as pessoas, que conhece pelos nomes. Ao balcão está Manuel Tavares, utente desde o primeiro dia. Lutou contra um cancro no estômago há um ano e agora vem aviar medicamentos para as frieiras. Apesar de ter passado por uma operação, sessões de quimioterapia e a perda de 25 kg, o septuagenário está firme. Desmancha-se em elogios ao falar da equipa. «Quando fui operado, a farmacêutica Delfina ligou para a minha casa e disse que ia ter comigo», recorda, orgulhoso.

As necessidades dos utentes nunca passam despercebidas à directora-técnica. Decidiu aderir ao programa de Preparação Individualizada da Medicação (PIM) quando assistiu a um pequeno acidente na farmácia. «Um dia, chegou um senhor com uma caixinha de comprimidos organizada, que o filho lhe deixava para tomar. Ele deixou cair a caixa e houve comprimidos por todo o lado». A maior parte, branca e redonda, impossível de distinguir.


Todas as quintas-feiras, na cave da farmácia, Helena Pires prepara medicamentos para 60 pessoas​

Agora, todas as quintas-feiras, na cave da farmácia, Helena Pires prepara medicamentos para 60 utentes aderentes ao programa PIM, a maioria deles idosos polimedicados, com a ajuda de um software espanhol e de uma máquina coreana. O programa informático analisa as receitas dos utentes e comanda um dispensador que divide os medicamentos em saquetas, inseridas em fitas semanais, quinzenais ou mensais. O profissional de saúde insere a terapêutica na máquina e o aparelho passa à divisão, de acordo com as indicações do software. As saquetas incluem a medicação necessária para cada dia.


As saquetas impedem enganos na toma da medicação

Os doentes já não prescindem do serviço, que custa quatro euros. «As pessoas compreendem a mais-valia de ter a medicação preparada e sem enganos», afirma a directora-técnica. Só a comparticipação permitiria levar o serviço a mais gente. «Poderemos assumir o custo de um caso social», refere a farmacêutica, mas não o poderá fazer por sistema. 


«Quando fui operado, a farmacêutica Delfina ligou para a minha casa e disse que ia ter comigo», recorda Manuel Tavares

Os enganos na toma da medicação saem caros. Os dados da OCDE revelam que 50 por cento da população mundial não toma os medicamentos de forma correcta. Para além dos riscos para a saúde, isso representa uma despesa de cerca de 125 mil milhões de euros. As razões para a toma incorrecta podem ser tão simples como dificuldade em distinguir a terapêutica, esquecimentos ou trocas. «O meu pai tomava os medicamentos da minha mãe e a minha mãe tomava os do meu pai», recorda Manuel Tavares.

O tempo despendido com os utentes poderá ser a maior garantia de adesão à terapêutica. «Muitos sentem-se enfartados com as tomas da medicação», revela Helena. Nessas situações, há que insistir. Explicar as vantagens da terapêutica, adaptar os medicamentos às preferências dos utentes, mas, acima de tudo, escutar. «O doente tem de ser bem tratado, porque se entra na farmácia tem de ter um certo conforto. Temos de ter empatia, de ser humanos», explica a farmacêutica.


«Na farmácia, somos como família», conta Maria Lopes, que toma 16 medicamentos por dia

A meio da manhã, faz uma visita à pastelaria Emílio Preto Rego, ponto de encontro da comunidade, para tomar o seu café. Pelo caminho, é abordada por utentes que a cumprimentam. Todos a conhecem. Senta-se à conversa com uma mulher chamada Maria Lopes. Falam sobre filhos e netos. Com hipertensão e diabetes, toma 16 medicamentos por dia. Para não cometer erros, aconselha-se na farmácia. «Já tenho uma certa idade e, por vezes, esqueço-me da medicação», diz. Não tem nenhuma queixa. «A gente vai-se afeiçoando às pessoas e passa a ser familiar, em vez de ser cliente».


Marta Silva detectou na farmácia um acidente vascular cerebral. A farmacêutica já não a largou

Do outro lado, a servir, está Marta Silva. A funcionária do café, de 44 anos, viveu um episódio marcante na farmácia. «Fui medir a tensão e detectaram que estava a ter o início de um AVC», afirma Marta. Um olho descaído e a falta de força no braço denunciaram a situação. Helena Pires, de imediato, recomendou que se deslocasse a um hospital. Insatisfeita, foi atrás da utente e seguiu-a até ao café, com receio de que apenas tomasse um ansiolítico e continuasse a trabalhar. «Se não tivesse ido à farmácia, se calhar não estava aqui hoje», agradece.

À tarde, na farmácia, uma podóloga trata dos pés dos utentes diabéticos, um serviço indisponível no Centro de Saúde da Charneca. A diabetes é um problema para muitos dos moradores da zona e a farmácia faz um seguimento atento. Muitos doentes chegam apenas com a insulina e nada mais. As dúvidas são esclarecidas pela equipa, que ajuda a administrar a terapêutica. 

Alguns países da União Europeia celebram protocolos entre o Estado e as farmácias para implementar programas de adesão à terapêutica. A directora-técnica defende a comparticipação de serviços como a PIM, mas não espera verbas. Vai continuar com o projecto e espera ajudar mais utentes.


Três farmacêuticas e uma ajudante técnica vigiam de perto cada pessoa. Elas são as linhas da frente do SNS em Vale Fetal

Três farmacêuticas e uma ajudante técnica servem a população, com a serenidade de quem faz aquilo de que gosta. Quando algum utente não aparece por vários dias, vão ao café ver se foi buscar pão. Caso contrário, batem-lhe à porta. Confiantes, são a linha da frente para todos os problemas. Nada as preocupa. E garantem: «Estamos cá para resolver».​
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