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8 fevereiro 2019
Texto de Maria Jorge Costa Texto de Maria Jorge Costa Fotografia de Miguel Ribeiro Fernandes Fotografia de Miguel Ribeiro Fernandes

«Há sempre uma farmácia no país que ficou deserto»

​​Em Portugal, tem-se ouvido pouco a sociedade civil sobre política do medicamento.

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​REVISTA FARMÁCIA PORTUGUESA: Como descreve o relatório europeu sobre o acesso aos medicamentos, de que foi um dos relatores?

JOSÉ INÁCIO FARIA: Este relatório é progressista no acesso aos medicamentos. Se pudesse traduzir numa palavra o que está em causa, diria solidariedade. Solidariedade e igualdade entre todos os cidadãos. O acesso ao medicamento, no sentido lato, é acesso à saúde, e tem de ser para todos, sem distinção de género ou idade. Vai-me dizer: «isso tem custos». Claro que sim. Mas tem de ser equacionado de um ponto de vista humanista. É preciso olhar para o cidadão como uma pessoa e não um número. Se conseguirmos seguir esse caminho, conseguimos orientar as políticas para se centrarem na questão social.


«Cada Estado decide quanto ao critério de formação de preços dos medicamentos. Alguns quiseram ir mais longe, outros não», refere José Inácio Faria

O relatório introduz muitas alterações?
A Europa dá indicações de como devem ser processadas algumas decisões. Os Estados transpõem como entendem os procedimentos para os ordenamentos jurídicos internos. Cada Estado tem a liberdade de decidir o momento da aplicação de determinada medida. É preciso termos presente o princípio da subsidiariedade. Os Estados-Membros não perdem totalmente a soberania, até porque há condicionalismos locais e regionais. Somos 28 Estados-Membros, mas não somos iguais. O relatório sobre o acesso aos medicamentos foi votado pelo Parlamento Europeu. A relatora principal, Soledad Cabezón Ruiz, recebeu um mandato para negociar com o Conselho Europeu os ajustamentos necessários. O Parlamento é muito ambicioso na defesa dos direitos dos cidadãos, mas tem de negociar com o Conselho [NDR: composto pelos chefes de Estado ou de Governo dos países da União, pelo presidente da Comissão Europeia e pelo presidente do Conselho Europeu, que preside às reuniões]. O somatório do consenso produz o enquadramento legal final. Cada Estado decide quanto ao estabelecimento, por exemplo, de um critério relativamente aos preços dos medicamentos. Alguns quiseram ir mais longe, outros não.


O Parlamento tem de negociar a política do medicamento com o Conselho Europeu, onde estão representados os Estados

O documento influencia mais do que impõe?
Nós apontamos algumas medidas, como a formação do preço, mas essa é uma prerrogativa dos Estados. Não podemos extravasar as nossas competências, mas podemos dar orientações, como por exemplo a concertação no estabelecimento do preço entre Estados. Temos de exigir maior transparência na fixação dos preços, para que Estados com menor capacidade financeira, como Portugal, possam ter acesso ao tipo de negociação feita, por exemplo, entre a Alemanha e a indústria farmacêutica.

O caso dos medicamentos para a hepatite C foi um marco nesse campo.
Sim. Na altura falou-se muito da disparidade de preços. O medicamento contra a hepatite C, salvo erro, no Egipto custava 800 euros e na Europa, em Portugal, era quarenta e tal mil euros. Quando os cidadãos tomaram conhecimento, através da comunicação social, destas disparidades de preços, os alertas começaram a soar. O Parlamento Europeu, com a iniciativa da Comissão, começou a incutir uma certa homogeneidade a nível europeu. Uma das respostas passa pela cooperação transfronteiriça. Há tratamentos, não só medicamentos, com custos mais baixos num Estado do que noutro. Em Portugal e Espanha, por exemplo. Há doentes que podem ser tratados em Espanha, onde o tratamento é muito mais barato para o erário público. O problema é a política de reembolso vedar a possibilidade de serem tratados em condições mais favoráveis. Há um grande caminho a fazer ao nível das instituições nacionais. 


O eurodeputado do Partido da Terra foi um dos relatores do relatório europeu sobre o acesso aos medicamentos

O acesso aos medicamentos inovadores parece ser um problema...
No caso dos medicamentos inovadores é mais grave, porque são ainda mais caros. Isso à partida veda o acesso a uma série de doentes que não têm condições para suportar o preço. O medicamento para a hepatite ficou acessível a todos os doentes identificados por ter havido alarde público. O Estado português foi obrigado a intervir e a negociar.

Portanto, quem não tem poder de compra não chega lá.
A indústria farmacêutica não é a inimiga, atenção. Eles estão no mesmo patamar de relacionamento que todos os outros stakeholders. Temos de os tratar bem, porque eles também precisam de nos tratar bem. Para atingirmos a meta que nos interessa, de permitir o acesso ao medicamento e ao tratamento a todos os cidadãos, temos de criar condições. Não podemos só apontar o dedo à indústria farmacêutica. A indústria tem de ser compensada de alguma forma para continuar o seu trabalho, que vai muito para além da venda do medicamento. A investigação e a inovação são fundamentais para criar fármacos para novas patologias que vão surgindo e para doenças raras. Há doenças tão raras e com um universo tão reduzido de doentes que não compensam os custos da inovação. Se a indústria farmacêutica não tiver incentivos desiste e os cidadãos deixam de ter os tratamentos. Não queremos isso.


O eurodeputado defende um programa robusto de incentivos à indústria farmacêutica para esta continuar a investir em novos medicamentos 

Como é que se compensa?
Há mecanismos. Temos de dar incentivos à indústria farmacêutica para continuar a investir em novos medicamentos. E há financiamento europeu, o Horizonte 2020 – Programa-Quadro Comunitário de Investigação & Inovação, tem um orçamento de 77 mil milhões de euros entre 2014 e 2020. Os próprios Estados têm acordos com a indústria farmacêutica relativamente a doenças específicas. Em Portugal, temos o caso da paramiloidose, conhecida por doença dos pezinhos. Há doenças tão raras e circunscritas que, sem apoio público, não são apelativas economicamente. O objectivo da indústria farmacêutica é o lucro e isso é perfeitamente razoável. O Estado tem de criar condições para a indústria trabalhar, mas impedir preços demasiado altos.  Compete às autoridades nacionais assegurar o equilíbrio, com a supervisão das instituições europeias.

O problema é que a população europeia está envelhecida e o peso da Saúde nos orçamentos é crescente, como é o caso de Portugal…
O importante é pôr as pessoas e as instituições a pensar. É essencial as instituições, ministérios, hospitais e os profissionais da área da saúde contactarem uns com os outros.

O dinheiro não chega para tudo e há restrições orçamentais.
Eu não gosto muito das restrições orçamentais, porque há para determinadas áreas e não há para outras. Talvez o problema seja a má distribuição das receitas. É preciso pensar bem e gerir melhor a distribuição do dinheiro.

O Orçamento do Estado tem de prever mais dinheiro para a Saúde?
É uma questão de prioridades. A Saúde é uma prioridade. Não sei se o Estado tem de dar mais fundos. Tem é de criar condições. Nós, portugueses, pensamos nas prioridades de forma muito genérica. Vamos trabalhando nas prioridades que a cada momento vão surgindo.


José Inácio Faria é o único deputado português na Comissão do Ambiente, da Saúde Pública e da Segurança Alimentar do Parlamento Europeu

Como fazer diferente?
Recupero a mensagem do presidente honorário do meu partido, o arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles. É preciso promover uma gestão equilibrada e sustentável do território. Se houver planeamento e estratégia de longo prazo deixamos de reagir aos problemas que surgem. Não podemos concentrar no litoral os hospitais e os centros de Saúde, e esvaziar o Interior. O orçamento para a Saúde tem de ser reforçado, sim. Mas antes disso é preciso planeamento.

Em Portugal, fecharam muitas extensões de centros de saúde, correios, tribunais. Em muitos locais, a farmácia é o serviço de saúde que resta.
Tenho familiares farmacêuticos e sou de um meio pequeno. Sei perfeitamente o que representa uma farmácia no país desertificado. A farmácia representa o primeiro contacto do cidadão com os cuidados de saúde e frequentemente o último. Temos farmacêuticos muito bons em Portugal, e ainda bem, porque colmatam a ausência de outros profissionais de saúde. Há zonas do país "carecas", sem instituições de espécie nenhuma. É a desertificação total. Mas há sempre uma farmácia em nenhures. E o cidadão das aldeias, das pequenas povoações, sabe isso. Há doentes que não se deslocam ao hospital mesmo que seja próximo. Vão à farmácia. Porquê? Porque a qualidade do atendimento do farmacêutico não se compara com nenhum outro. O farmacêutico não vende só um produto, vende uma panóplia de serviços. Contacta, fala com as pessoas. Há pouco, falou-me do envelhecimento da população. Há gente que não tem contacto com ninguém e às vezes vai à farmácia só para falar, para ter um bocadinho de atenção. Esse é um serviço fundamental que os farmacêuticos prestam. Isto também faz bem em termos de saúde, porque a pessoa precisa desse acompanhamento, de uma palavra amiga. O serviço que a farmácia presta não é mercantilista. Muitas vezes é por insistência do farmacêutico que os doentes vão ao médico. Muitas farmácias já ajudam as pessoas a marcar consultas médicas, apesar de isso ainda não estar regulamentado.


O eurodeputado acredita que a venda online de medicamentos vai ser disciplinada

Como garantir a segurança da compra online de medicamentos?
Há dois tipos de compras online. Grande parte das farmácias tem uma página de venda na Internet. Outra coisa são os medicamentos vendidos online. Para os medicamentos vendidos online, há formas de garantir a origem segura. Esta foi uma evolução resultante de situações de pessoas que fizeram compras de medicamentos online e tiveram problemas. Houve inclusivamente mortes. O legislador europeu entendeu regulamentar e criar um certificado para este mercado. Foi criado um logotipo de certificação de medicamentos de venda online. Estamos a falar de uma zona geográfica alargada a 28 Estados-Membros. É forçoso garantir a cobertura total de certificação de venda de medicamentos. O negócio online de farmácias comunitárias não necessita dessa certificação, uma vez que a própria farmácia está sujeita a certificação. Neste caso, os produtos vendidos online ou ao balcão são os mesmos. Aos poucos vamos regulamentando, criando regras, normas de procedimentos e conduta para tranquilizar os cidadãos.

Transpondo a reflexão europeia para Portugal, como vê a aplicação da política do medicamento?
Portugal não é o pior aluno. O que me parece é que, nas questões referentes à política do medicamento, em Portugal tem-se auscultado pouco a sociedade civil. Quando falo em sociedade civil, incluo as organizações não governamentais (ONG) e as associações de doentes. Apesar de tudo, verifico uma melhoria relativamente às associações de doentes. Têm-se envolvido mais a nível europeu. No resto da União, a população é muito activa, sabe o que representa a Europa. Estão mais próximos das instituições europeias do que os portugueses. Neste momento, já sinto o interesse de organizações nacionais e de doentes. No início, era quase inexistente. O primeiro relatório que tive foi um regulamento sobre a emissão de CO2 nos transportes marítimos, que se aplica a todos os Estados-Membros independentemente da sua vontade. Durante a fase preparatória e até à conclusão do texto final, tive zero contactos ou recomendações por parte das autoridades portuguesas. Só depois se lembraram das regiões periféricas e vieram com tentativas de alteração de texto. Quando já estava fechado. Independentemente de eu ter pedido instruções.

Como se explica o impacto do trabalho dos eurodeputados na vida das pessoas?
Quando sou convidado para falar em escolas em Portugal explico que o que vestem, calçam, a comida, a água que bebem e até o ar que respiram, está tudo regulamentado. Os miúdos ficam muito admirados, porque nunca pensaram nisso. Antes do Estado legislar sobre uma matéria recebe instruções precisas da União Europeia. Através de directivas ou de regulamentos.

E a importância das eleições para o Parlamento Europeu?
Os cidadãos não têm noção da importância das eleições para o Parlamento Europeu. De escolher quem é eleito. Vivemos uma crise de identidade na Europa. Há movimentos de extrema esquerda e de extrema direita que tudo fazem para pôr em causa 60 anos de construção europeia. É um perigo real e actual.
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