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8 fevereiro 2021
Texto de Rita Leça Texto de Rita Leça

«Foi uma aventura que correu bem»

​​​​​​A entrevista de vida de Carlos do Carmo, à revista das Farmácias Portuguesas​.

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Ainda sente aquele nervosinho antes de subir ao palco? 
Nervosinho? Não, já não.  Agora sinto um nervosão! 

É algo a que uma pessoa nunca se habitua? 
Jamais! Uma vez, convidei o Chico Buarque para vir a Portugal. Fomos cantar ao Monumental. Ele estava tão nervoso que a Marieta, a sua primeira mulher, e a minha mulher tiveram, as duas, de o empurrar para o palco. Empurrar! A verdade é que os públicos nunca são os mesmos. Por exemplo, antes de subir a um palco que não seja na Grande Lisboa ou no Grande Porto penso sempre: «Vou cantar numa terra que não é do fado. Eles têm outras músicas.» E faço cerimónia. Talvez isso me ligue às pessoas. Percebem que estou a fazer cerimónia e isso liga-nos.

Sente-se bem recebido? 
Sempre fui tratado com respeito, como um ser humano, um artista e não como um qualquer objecto de consumo. Isso apraz-me bastante. Por estar há tantos anos a cantar, tive a oportunidade de ver a mudança dos tempos. No princípio era difícil, muitas vezes em condições precárias. Cantei, uma vez, numa esplanada no Algarve. Noutra, em cima de um tractor, no Alentejo, onde o barulho do gerador era mais alto do que a minha voz. Quando passamos por estas coisas e depois chegamos a um palco, dizemos: “Ah, estou no meu sítio! Mas foi bom ter estado nos outros”.

Disse, há tempos, que estar no palco é um jogo de sedução. 
Completamente. 

Também se alimenta dessa experiência? 
Como todos os artistas, sou narcisista. Gosto muito de estar em palco, mas também aprendi. E quem me ensinou foi o Frank Sinatra. Tenho muitos livros sobre ele e, num dado momento, ele disse que estar no palco é como estar na sala de estar a receber as visitas. E, se pensar bem, aquele silêncio, aquela densidade, tem muito a ver com essa aproximação.
​Carlos do Carmo foi o entrevistado de capa da Revista Saúda de Fevereiro de 2020
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Estar em palco dá-lhe vida?
Gosto tanto de cantar, e de cantar para as pessoas, que me transformo. Tudo se centra na cabeça, no coração e na voz. Para mim, cada concerto é uma viagem. O público é quem tem a condução.

Já do trabalho no estúdio, ouvi dizer que não gosta nada…
Gravar um disco ao vivo é algo que amo. Porque não deixo o técnico tocar em nada. Os erros são para ficar, porque quem toca e canta são pessoas, seres humanos. No estúdio, não. Tem de se corrigir tudo. É uma chatice. Ao fim de uma semana já não posso ouvir o disco.

Acha que, hoje, o fado está em boas mãos? 
Temos vozes maravilhosas:  o Ricardo Ribeiro, o Camané, o Pedro Moutinho. Curiosamente, houve um tempo em que, no estrangeiro, achavam estranho um homem cantar fado. Na primeira vez que cantei no Olympia, em Paris, as pessoas ficaram estupefactas porque achavam que quem cantava fado era só a Amália!

E no caso das fadistas mulheres? 
Há vozes muito bonitas, que cantam muito bem o fado, mas agora deu-lhes para fazer mainstream. Viraram cantoras pop e é tudo com bateria. Para quê? Se me disser percussão, que é uma coisa agradável e cobre certas sonoridades, entendo. Mas bateria? Pode chamar-me "bota de elástico", mas confesso que não entendo.

Lançou-se no fado com “Loucura", numa versão nada convencional, com guitarra, baixo e coro feminino. 
Isso foi uma loucura. O Mário Simões, na altura, tinha uma banda com muita popularidade. Eu costumava c​antar com ele, canções francesas, italianas, americanas. Um dia, convidou-me para cantar um fado no seu disco. Disse-me: “Era giro! São quatro faixas. Já tenho três. Falta-me uma e gostava que fosse a tua”. Então, cantei com bateria – mas vassouras, nada mais pesado, guitarra eléctrica, baixo, piano e duas senhoras que faziam vozes. Pensei que seria massacrado. Qual não foi o meu espanto quando começou a tocar na rádio. E nunca mais parei.

Foi inovador. 
Não sinto isso. Penso que foi uma aventura que correu bem. 

Sempre quis ser fadista?
Eu gostava de ter sido advogado...

Aos 15 anos, quando terminou o liceu, foi estudar para a Suíça.
O meu pai era um homem muito determinado. E eu era filho único, sabe como é. E disse assim: «Vou mandar--te para o colégio tal». Eu nem sabia que colégio era. [NR: Institut auf dem Rosenberg, colégio alemão situado em São Galo]. Depois vim a saber que era o colégio mais caro do mundo. Do mundo! Ele não ganhava dinheiro para pagar aquele colégio. Tinha de pedir aos amigos dinheiro emprestado.

Aprendeu várias línguas…
Foi muito útil para a minha vida. Durante 20 anos dirigi a casa de fados [NR: O Faia], falava com os clientes de onde quer que viessem e fui ensinando os empregados. Hoje, a cantar, qualquer que seja o país, eu estou em comunicação com as pessoas.

A intenção do seu pai não devia ser fazer de si fadista…
O meu pai, só de sonhar que eu seria artista, tremia todo. Nem pensar nisso. E dizia às vezes, com uma certa graça: «Já bem me basta aturar uma maluca em casa, agora aturar dois, não!». Morreu muito novo, não chegou a ver o artista. Conhecendo eu a sensibilidade dele – e conhecia-a muito bem – penso que se ele tivesse ouvido o artista era capaz de não desaprovar. Mas depois era capaz de me atirar em cara e dizer assim: «Então, andei a gastar este dinheiro todo para tu agora andares a cantar o fado, é?».​
​​Há um ano, Carlos do Carmo tinha vontade de percorrer o país a falar do Fado e ajudar um jovem a lançar​-​​se

E qual será a sua próxima aventura?  
Deixei os concertos, mas não sou homem de passar o dia de chinelos a ver TV. Gostava de percorrer o país e conversar com as pessoas sobre o fado. Elas fazem perguntas e respondo o que sei. O que não sei fica em aberto. Para ultrapassarmos aquela situação, para mim muito dura, que acontece quando pergunto a alguém se gosta de fado e a pessoa responde: «Gosto muito!». Depois pergunto: «De que fados gosta especialmente? Da Mouraria, por exemplo?». E a pessoa diz logo: «Ah, disso não percebo nada!». Ora, isso não tem sentido. Além do mais, também gostava de ajudar alguém jovem a construir uma carreira, desde o zero. São estes os meus planos. Já não é mau. (risos)

Qual é o segredo para chegar com tanta energia aos 80 anos? 
Não esperava chegar aos 80 anos. Tive uma vida muito desgastante, cantei no mundo inteiro e isso cansa, deixa peso. Esperava viver a Primavera da vida, o Verão, o Outono, mas confesso que não esperava chegar ao Inverno. Foi uma benesse de Deus e estou muito grato por isso.​
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