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2 agosto 2019
Texto de Maria João Veloso Texto de Maria João Veloso Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

Filipe comanda os bastidores

Quando vai de férias, a equipa já tem dificuldade em viver sem ele.

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Farmácia Luciano & Matos Coimbra

Quinta-feira, 2 de Junho de 1988, Filipe André Fernandes vinha ao mundo em São Martinho de Árvore, concelho de Coimbra. «Era dia de Corpo de Deus», anuncia o jovem, para quem o calendário religioso é muito importante.


Helena Amado sabia que pessoas especiais fazem melhor tarefas rotineiras

Apesar de ter nascido com trissomia 21, a deficiência não é obstáculo na vida de Filipe. A trabalhar desde os 17 anos na Farmácia Luciano & Matos, o jovem é um elemento fundamental da equipa. Quem o garante é Helena Amado, directora-técnica desta casa em plena baixa coimbrense, vizinha da Igreja de Santa Cruz.  Por ali todos o conhecem. A Nelson Silva, proprietário do Café vizinho “A Petisca”, sobram-lhe elogios: «É uma pessoa espectacular. A gente vê pessoas com mais saúde e não têm as capacidades que ele tem».​


«É uma pessoa espectacular. A gente vê pessoas com mais saúde e não têm as capacidades que ele tem», assegura Nelson Silva

De facto, a organização é o cartão-de-visita do jovem colaborador. Farmacêutica há 38 anos, Helena Amado é a responsável por esta história de sucesso. Foi a sua consciência de que trabalhos rotineiros podem desmotivar certo tipo de funcionários que a fez procurar alguém diferente. «O trabalho de arrumar medicamentos várias vezes por dia e de reposição de todo o material na retaguarda é essencial para que depois, no balcão, o trabalho flua sem complicações».

Helena sabe que pessoas com limitações,​ sendo treinadas, desempenham na perfeição este tipo de funções. O primeiro passo foi indagar a receptividade da equipa à causa. «Quis saber se viam como uma mais-valia recebermos alguém que gostasse de rotinas e o fizesse com gosto, no dia-a-dia». Desafio aceite.

«Até o Filipe ser um dos nossos foi um salto», recorda a farmacêutica, cujo entusiasmo é contagiante. Numa conversa informal com Ana Neto, uma amiga que trabalhava em ensino especial, na Escola C+S de São Silvestre, de Coimbra, soube da existência dele. Com 17 anos, depois de ter concluído o 9.º ano, tinha de sair da escola. «Era um rapaz com muitas capacidades e sobretudo vontade de trabalhar». A farmácia, em conjunto com a escola, começou a prepará-lo para ter contacto com os diversos tipos de embalagens de medicamentos: os comprimidos, as pomadas e os injectáveis. «Estamos a falar de dois meses de treino, no total», lembra a directora-técnica.

A ida de Filipe para aquele que é hoje o seu local de trabalho implicou vencer outra etapa: habituar-se ao trajecto entre São Martinho de Árvore e Coimbra. Mais uma vez, uniram-se esforços para o familiarizar com o autocarro e os respectivos horários. Nos primeiros dias, acompanhavam-no professoras e auxiliares da escola. «Quando passou a identificar o transporte, começou a vir sozinho. Elas vinham atrás, de carro, para se certificarem de que ele saía na paragem certa». Em Agosto de 2005, Filipe entrou na Farmácia Luciano & Matos com o pé direito. «O processo foi rápido, porque ele aprende depressa», conta a farmacêutica, meio mentora e outro tanto maternal. 

Tal como um puzzle só faz sentido se as peças encaixarem, todos os colaboradores do backoffice foram “formados” para lidar com um colega com características especiais. «Aqui dentro tem sido uma aprendizagem para todos», relata Helena Amado. Filipe gosta de tudo no lugar certo – e isso arrastou a equipa. «Ficámos mais organizados», reconhece a directora-técnica.

É o colaborador com trissomia 21 que se encarrega da arrumação dos seis balcões, de acordo com a filosofia japonesa Kaizen, que promove a melhoria da organização no local de trabalho. «Cada coisa no seu lugar e um lugar para cada coisa», explica a farmacêutica.

Cumpre com afinco todas as tarefas. Só é necessário pedir-lhe o que quer que seja uma única vez. Tornou-se um elemento vital, que toda a equipa considera indispensável. A prova disso acontece sempre que vai de férias. Lá para os finais de Agosto, ruma ao Algarve com os pais, para a «água quentinha» da Quarteira. «Sentimos muito a sua falta e até ficamos contentes com os raspanetes que nos dá quando regressa», brinca a directora-técnica.   



Para facilitar a vida a quem está ao balcão, há três anos foi instalado um robô na farmácia. Filipe ficou deprimido com a chegada daquela máquina que aparentemente iria substituí-lo. «Na imaginação dele, pensava que era um boneco que vinha fazer o seu trabalho». Helena tranquilizou-o, dizendo-lhe: «Tu serás o responsável pelo robô». É ele que parametriza manualmente o robô, quando este não reconhece a embalagem, de forma a poder armazená-la. Para além disso, supervisiona os prazos de validade. Decide quais as embalagens a entregar aos cuidados do robô e quais devem antes ser colocadas nas caixas cor-de-rosa velho com a inscrição “reposição de stock – validade curta”.



Filipe é um jovem como os outros. Quando despe a bata, passeia de ténis de marca, pólo às riscas e calças de ganga. Gosta de passar o tempo no café da terra com os amigos que cresceram com ele. Nesta Páscoa, representou três papéis na mesma peça religiosa: José de Arimateia, Caifás e Cirineu, que foi obrigado pelos soldados romanos a carregar a cruz de Cristo no calvário. «Este ano, a cruz era muito pesada», brinca Filipe, entre sorrisos.

Risonho, prestável, a candura de Filipe estende-se à comunidade da terra. «Sou muito religioso, sou eu que ponho o sinito a tocar quando o padre entra». É ele também que acompanha a avó de 98 anos no terço diário. As rotinas cumprem-se. Religiosamente. Apanha todos os dias o autocarro que sai de São Martinho de Árvore às dez menos oito. Susana Ribeiro, técnica auxiliar de farmácia, realça a boa-disposição dele, «sempre a cantarolar músicas da igreja». Todos observam que é feliz na farmácia, «tem os níveis de motivação sempre ao máximo».

A Farmácia Luciano & Matos tem uma equipa amadora que participa em muitas corridas. «Filipe, chegaram as tuas sapatilhas», disse-lhe há uns tempos Helena Amado, ao receber uns ténis que tinha encomendado. Ele fugiu. Voltou pouco depois, para vigiar o robô e as rotinas. Está sempre a circular, entre a retaguarda e o balcão. Ao seu ritmo. Põe os telefones no lugar e distribui a Revista Saúda pelos balcões. Filipe vai a todas, desde que não lhe desarrumem a cabeça e… não o obriguem a correr a maratona.​​
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