Houve um tempo em que as farmácias caíram na armadilha de ser protagonistas do jogo político. O destempero na defesa de pontos-de-vista, por mais racionais, e a arrogância de muitas manifestações públicas deixaram a nossa rede altamente vulnerável.
O ricochete político desses actos narcísicos ainda hoje tem consequências nefastas para a Saúde Pública e a sustentabilidade das farmácias.
Portugal é o único país do mundo em que a pílula do dia seguinte está disponível nas prateleiras de lojas indiferenciadas, o que constitui uma perigosa ofensa à segurança e integridade das mulheres portuguesas.
As farmácias instaladas em hospitais foram outra originalidade portuguesa. Deixaram um rasto de dezenas de milhões de euros de dívidas ao SNS e contribuíram para a falência de farmácias comunitárias verdadeiramente necessárias às populações.
As Direcções a que presidi, com paciência e discrição, conseguiram inverter a tendência de fazer das farmácias o alvo a abater das políticas de saúde.
Assistimos ao encerramento da última farmácia enxertada num hospital e à revogação da legislação que forjou essa bizarria.
Conseguimos relações de equilíbrio com o sector social e evitar a sua instrumentalização para destruir a assistência farmacêutica às populações, em condições de equidade em todo o território.
O poder político começou a mostrar-se sensível às questões de segurança decorrentes da despromoção dos medicamentos a vulgares produtos de consumo. Foi criada uma nova classe de medicamentos, que, apesar de dispensarem a prescrição médica, continuam a exigir o aconselhamento farmacêutico.
Como é próprio da guerra, os efeitos colaterais são os mais difíceis.
Os ataques à economia das farmácias abriram a porta do sector a interesses egoístas e a pessoas sem interesses nos doentes.
Numa sociedade de mercado, o lucro obtido pelo esforço e o mérito é natural e saudável. Não pode é ser confundido com a construção de impérios em pouco tempo, sem respeito pela ética, os concorrentes, a integridade da rede e o serviço às populações.
Falo, por exemplo, da prática de descontos no preço dos medicamentos sujeitos a receita médica, outra originalidade portuguesa resultante das guerras suicidas do passado.
Os meus colegas de outros países ficam sempre espantados ao saberem que é possível induzir o consumo de fármacos num país europeu. E perguntam como pode isso concretizar-se, se o Estado continua a fixar preços e comparticipações.
Esta semana, a publicidade aos descontos nos medicamentos foi finalmente proibida.
Vou voltar a passar por Lisboa, Porto, Braga, Viseu e outras cidades do meu país sem sentir vergonha, como farmacêutico, de olhar para algumas montras ou outdoors.
Demorámos oito anos a percorrer metade do caminho.
Estes últimos anos ensinaram-me que as feridas morais e políticas levam muito tempo a fechar. Quando se chama desonesto a um ministro e cobrador de impostos a outro, o eco dessas palavras fica a ressoar por muitos anos no Palácio de São Bento e na Avenida João Crisóstomo.
Muitas farmácias inocentes pagaram com a falência esse atrevimento.
As farmácias chegaram a estar isoladas no sistema de saúde.
Hoje estão mais integradas do que nunca.
Uma das melhores recordações que levo dos meus mandatos é a assinatura de todos os Senhores Bastonários das Ordens Profissionais da Saúde e de todos os parceiros do sector do medicamento da petição “Salvar as Farmácias, Cumprir o SNS”.
Outra, a tarde da respectiva aprovação no Parlamento. Todos os partidos reconheceram que a nossa rede é indispensável à coesão territorial, deve ser mais bem aproveitada em benefício das populações e não suporta novos cortes.
Bem sei que feridas mal cicatrizadas podem reabrir de um momento para o outro. Mas confio na nossa sabedoria e instinto. Nos próximos oito anos, as farmácias vão percorrer a outra metade do caminho, evitando cair outra vez em armadilhas.