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2 junho 2022
Texto de Sandra Costa Texto de Sandra Costa Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro Vídeo de João Lopes Vídeo de João Lopes

Espelhos de água

​​​​​​​​​​​Terra de arrozais à beira-mar plantados.

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Em maio, os campos são espelhos de água a perder de vista, entre junho e agosto transformam-se num manto verde, que vai amarelecendo até à altura da apanha, em outubro. Os arrozais estendem-se por 5.000 hectares, em Alcácer do Sal e na Comporta, fizeram da região um caldeirão de culturas. Atraíam anualmente centenas de camponeses algarvios, alentejanos, beirões e galegos. Muitos ficaram. «Houve uma grande miscigenação desta população toda», diz o médico Mário Moreira, que mora em Alcácer do Sal há quase 40 anos. Gosta deste Alentejo diverso, que reúne montado, na zona do Torrão, praias quase desertas, como a Comporta ou o Carvalhal. Natural de Lisboa, aprendeu a amar o Sado, que corre já largo à passagem pela cidade, a poucos quilómetros de transbordar em estuário.


O médico Mário Moreira mora em Alcácer do Sal há quase 40 anos. Gosta deste Alentejo diverso, feito de campo e praias

O carro desliza na reta quase sem trânsito que liga Alcácer do Sal à Comporta, ao longo de 30 quilómetros. No terreno arenoso das bermas sucedem-se as copas redondas dos pinheiros, que fazem desta região o maior produtor nacional de pinhão. Avistam-se dunas de areia, um armazém agrícola, um ou outro muro caiado de branco e debruado a azul que assinala a entrada numa herdade. No topo de cada poste, um ninho de cegonha. O estuário do Sado é um paraíso para a observação de aves, mais de 200 espécies, entre cegonhas brancas, flamingos, garças reais e patos bravos. Espanta o espaço aberto, selvagem, quase impoluto de mão humana, assusta o anúncio de quatro novos campos de golfe e 35 mil camas previstos para os 62 quilómetros de costa entre Troia e Sines.


Ninhos de cegonha no largo da aldeia da Comporta. O estuário do Sado é um paraíso para a observação de aves, são mais de 200 espécies

Até à década de 1970, o barco que atravessava o estuário do Sado era o meio de transporte preferencial para chegar à Comporta, as estradas não eram alcatroadas. Quando Mário Moreira chegou, em 1985, a praia da Comporta não era vigiada, no Carvalhal «montava-se uma tenda e ali se ficava um mês na praia». Hoje, com o verão chegam os turistas, portugueses, espanhóis, muitos franceses.

 Praia da Comporta, ainda deserta grande parte do ano

«A Comporta está na moda», resume Fernando Mateus, criado na aldeia há 70 anos. Gosta do movimento que o turismo traz à terra, embora se sinta «turista todo o ano»: não é raro pedirem-lhe um euro e meio por um café. Só o incomoda «quem vem e não respeita quem está», e explica, sorrindo, que há quem insista em estacionar ao lado da cadeira da esplanada. O «Comporta», como era conhecido na tropa, toda a vida trabalhou para a Herdade da Comporta. Quando fez o exame da quarta classe, o pai ofereceu-lhe uma foice. Aprendeu a mondar e ceifar o arroz, guardou gado, cortou lenha, partiu para a indústria hoteleira em Setúbal, mas não gostou, regressou para trabalhar na fábrica de arroz, onde ficou 20 anos, até ao fecho. Diz não ter razão de queixa. «Ganhar muito não se ganhava em lado nenhum. Aqui, alguns ainda recebiam casa para morar e não pagavam luz nem água», resume.


Fernando Mateus trabalhou 20 anos na fábrica de arroz da Comporta. Hoje, recebe os turistas no Museu do Arroz

No verão, é ele quem recebe os turistas no Museu do Arroz, instalado na antiga fábrica que produziu a marca Ceifeira, a mais antiga de Portugal. O antigo edifício branco, defronte do estuário, onde o arroz era descascado, após secar na grande eira, e depois branqueado e embalado, conserva a maquinaria do início do século XX e a memória das ceifeiras que, de pés nus e saia levantada acima do joelho, desafiavam o vento e o calor, as águas paradas e os mosquitos. Na bacia do Sado, a malária só foi erradicada no final da década de 70.

Hoje, as sementes e os fertilizantes são lançados por avionetas, as ceifeiras-debulhadoras substituíram as foices e dispensaram os 500 trabalhadores que anualmente eram alojados nas camaratas da herdade. A mecanização ditou o fim de um modo de vida. «A herdade dava casa, trabalho, fazia as festas, era a dona da terra e, vamos lá, das pessoas…», resume Mário Moreira.


O Museu do Arroz conserva a memória das ceifeiras que, de pés nus e saia levantada acima do joelho, desafiavam o vento e o calor, as águas paradas e os mosquitos

A maior herdade privada portuguesa, hoje com 11.000 hectares, foi vendida pela Companhia das Lezírias do Tejo e do Sado à inglesa The Atlantic Company em 1925, a quem se deve o engenho do negócio do arroz: os canais de rega, que funcionam até hoje, o muro de 22 quilómetros que conquistou o sapal ao estuário do Sado e a fábrica. Coube à família Espírito Santo, proprietária desde 1955, a construção das infraestruturas de saneamento, da igreja, escola, posto médico, mercearias, um banco, campo de futebol e até um cinema. «Melhoraram as condições de vida da população», garante David Reis, do departamento agrícola da herdade. Após a Revolução dos Cravos, a herdade foi nacionalizada e, entre 1989 e 1991, devolvida aos proprietários, que iniciaram a modernização e diversificação agrícola, incluindo o pinhão e o vinho, e a aposta no turismo.


Leonardo Jacinto e Fátima Ricardo trocaram os arrozais pelo mar. Ele é responsável pela lota da Carrasqueira, ela é pescadora

Quem queria escapar à miséria da lavra tinha na pesca a única alternativa. «E o mar é rico», diz Leonardo Jacinto, responsável da lota da Carrasqueira. Em 1984, a nova lota permitiu-lhe escapar à agricultura. No estuário abunda o choco, que chegou a render mais de duas toneladas por dia. Hoje, num dia bom, pesca-se 600 quilos. Há ameijoas e as ostras regressaram, após uma fase de poluição do estuário.

Cais palafítico da Carrasqueira, um labirinto emaranhado de passadiços de madeira assentes em estacas, onde os pescadores atracam os barco​

O cais palafítico da Carrasqueira, construído pelos pescadores, é um labirinto emaranhado de passadiços de madeira assentes em estacas, como ruas sobre as águas, onde estão atracados barcos de fundo chato. É aqui que Fátima Ricardo ancora o “Romper da Aurora”, onde sai bem cedo para a pesca. Quando não há choco, Fátima apanha ameijoas e minhocas no chão lodoso do estuário. O tempo dos arrozais - começou aos 11 anos - não deixou saudades. «O rio é o meu sustento», diz, os olhos vivos no rosto tisnado pelo sol.


Peixe, marisco e arroz, os pratos típicos da região

De arroz e mar se faz a gastronomia nesta costa alentejana: peixe escalado só com sal, à moda de Setúbal, e pratos caldosos de arroz carolino com lingueirão, choco, polvo ou marisco. A encerrar, uma pinhoada, feita de doce de mel e pinhão.


O correeiro José Simões já leva 41 anos de ofício. Faz «por gosto»

No regresso a Alcácer do Sal é hora de visitar o correeiro José Simões, que já leva 41 anos de ofício, começou aos 14. Na oficina repleta de peças de couro e cheiro a cola cria, sobretudo, selas à portuguesa, que tanto vende a cavaleiros portugueses, como a amantes de hipismo estrangeiros. Faz «por gosto», só lamenta que «não se valorize o ofício em Portugal».


Vista da ponte sobre Alcácer do Sal. O castelo de origem árabe deu o nome à cidade: Al-Kassr, do Sal em honra das salinas que fizeram a prosperidade da terra

Cruzado pela ponte metálica ao estilo do famoso engenheiro francês Gustavo Eiffel, o rio é a essência de Alcácer do Sal. À sua beira, as esplanadas enchem-se de gente no calor da noite alentejana. O casario branco trepa a colina até ao antigo castelo de taipa, de origem árabe, que deu o nome à cidade: Al-Kassr, do Sal em honra das salinas que fizeram a prosperidade da terra desde o período romano até à substituição pelos arrozais. A arqueóloga Marisol Ferreira guia uma viagem por 2700 anos de História, na cripta que contém vestígios da Idade do Ferro, épocas romana e islâmica, até ao convento Carmelita de Aracelli, do século XVI, hoje uma pousada.​​



No antigo castelo de Alcácer do Sal existe uma cripta arqueológica que contém 2700 anos de História

Emergindo das catacumbas ao ponto mais alto da cidade, a vista alcança o que desde sempre atraiu aqui os povos: as terras férteis e o rio navegável, que corre entre os arrozais até desaguar numa das linhas de costa mais belas de Portugal.​

 



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