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30 junho 2022
Texto de Sandra Costa Texto de Sandra Costa Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro Vídeo de João Lopes Vídeo de João Lopes

Ela quer subir o Pico

​​​​​​As amputações derivadas de complicações do lúpus não travam os sonhos de Cátia.

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Quem vê Cátia Resendes e o marido a passear no parque infantil com o filho de cinco anos, não imagina as dificuldades por que passou a jovem açoriana. Nada no seu andar denuncia que, aos 17 anos, perdeu parte dos pés, na sequência de um problema causado por uma reação alérgica a um antibiótico, motivada pela doença autoimune com que convive desde sempre, o lúpus. Ainda antes de ter próteses, Cátia aprendeu a equilibrar-se e recomeçou a andar. Não se poupa ao movimento. Conheceu o marido a dançar. Fazer trilhos na Natureza é o programa favorito da família.

Cátia sempre sofreu de problemas de pele e reações alérgicas a cremes e medicamentos. Em criança tinha febres repentinas que só baixavam com antibióticos. Aos sete, e depois aos 11 anos, sofreu crises de dores articulares que a impediam de vestir-se ou comer sozinha. Acordava com um joelho ou um cotovelo inchados, às vezes doíam-lhe os maxilares. Sentia-se aflita quando não podia ir à escola ou acompanhar as atividades dos colegas. «Era limitador», recorda. Suspeitou-se de artrite reumatoide, havia casos na família, mas o diagnóstico só chegou aos 13 anos, depois de quase dois anos de testes no Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Os médicos disseram-lhe que a doença estava num estado avançado, prejudicada pelas tomas desnecessárias de antibióticos.

 Nada no andar de Cátia denuncia que não tem parte de ambos os pés

«Provavelmente o diagnóstico teria sido precoce se vivesse em Lisboa e não na ilha das Flores», reconhece a jovem, que não troca o seu «cantinho do céu» por nada, mesmo sabendo que o clima húmido no Inverno não ajuda às dores articulares. Desde que iniciou a terapêutica adequada, a doença estabilizou. Cátia aprendeu a conviver com os sintomas crónicos, sobretudo cansaço extremo, alguma rigidez articular e muscular, mas também ansiedade e mudanças de humor, que tenta prevenir com um estilo de vida saudável: evita alimentos prejudiciais, faz exercício físico e tenta gerir as emoções, «respirar fundo, pensar em coisas boas, fazer algo de que goste para amenizar os sintomas». 

Sabe quando a doença se torna ativa. Um dos primeiros sinais é um «calor interior, sobretudo na face. O rosto incha e fica vermelho». O lúpus eritematoso sistémico é uma doença autoimune que faz com que as células de defesa do organismo ataquem células saudáveis, sejam elas tecidos ou órgãos. As pessoas com a doença devem ser monitorizadas de forma contínua, para garantir que nenhum órgão interno está a ser agredido. As manifestações são muito variáveis. No caso de Cátia, a doença pode manter-se «adormecida» durante anos e, subitamente, o organismo reagir a alguma condição externa adversa. Picos de stresse potenciam as crises. Suspeita-se que foi uma meningite lúpica que se seguiu à cesariana de emergência, após 26 horas de parto, e implicou a reanimação do filho. A doença é uma ameaça latente, mas Cátia recusa sucumbir ao medo. «Sobretudo desde que fui mãe, preocupo-me mais com o futuro. Por quantos anos conseguirei trabalhar?». O marido acalma-a, a seu tempo encontrarão uma solução. Ela concorda: «Não vale a pena viver com medo, é preciso tentar fazer uma vida normal. Tudo se resolve».

 Nos últimos quatro anos caminha sem próteses e, embora seja pouco pesada, o peso está a criar lesões na coluna e feridas internas nos calcanhares

O episódio mais grave aconteceu a 7 de maio de 2006, dia em que fazia 17 anos. Uma reação alérgica a um antibiótico desencadeou uma situação tão drástica como rara: uma septicémia e uma doença hematológica rara, chamada PTT (Púrpura Trombocitopénica Trombótica), provocaram a amputação de um terço dos dois pés e algumas falanges das mãos. A experiência dramática, mais ainda no caso de uma adolescente, revelou também a fibra de que é feita. Quando soube o que ia acontecer chorou a noite inteira, no dia seguinte pediu ao médico para avançar o mais cedo que pudesse. «Não queria adiar a recuperação, passar o verão, que adoro, no hospital», explica. O processo de aceitação foi duro: «Cortaram-me os pés. E agora, o que é que eu faço?». A frase resume o desespero da miúda que pensava nas unhas que não podia voltar a pintar, nas havaianas que não voltaria a usar, no verão e na praia a chegar. Cátia recorda nitidamente o dia em que conseguiu fintar a depressão. Após uma visita dos amigos, pensou: «Eles vão à vida deles e eu fico aqui». De seguida, deixou de chorar pelos pés que nunca ia voltar a ter e foi para a Internet procurar próteses.

Passou cerca de um ano numa cadeira de rodas, mas nunca pôs a hipótese de não voltar a caminhar. Quando as feridas sararam, encheu os sapatos com uma pasta feita de algodão e, com o apoio de canadianas, começou a treinar o equilíbrio, assente nos calcanhares. Enfrenta, há 16 anos, a burocracia que teima em obstruir-lhe o caminho: as próteses do melhor silicone, o único que a sua pele extremamente sensível tolera, custam para cima de 20.000 euros, o que dificulta a comparticipação estatal. Com o apoio dos hospitais da Ilha Terceira e dos Capuchos, em Lisboa, conseguiu umas, que duraram quase oito anos. Nos últimos quatro anos caminha sem próteses e, embora seja pouco pesada, a descarga do peso nos calcanhares está a criar lesões na coluna e feridas internas nos calcanhares.


Aprendeu a lidar com os sintomas crónicos, como o cansaço e as alterações de humor. «Quando consegui aceitar, fiz a minha vida normal».

Depois das amputações ganhou uma «certa frieza em relação a pessoas que se queixam por tudo e por nada». A maturidade tornou-a mais tolerante, hoje pensa que «ainda bem que nem toda a gente passa por processos tão drásticos». Ainda assim, prefere não se lamentar. Cátia acha que o otimismo ajuda a superar as adversidades e nunca se martirizou a pensar porque lhe aconteceu a ela. «Perdi os pés, podia ter perdido as pernas. Prefiro pensar nas soluções». Acredita que se isto lhe aconteceu é porque teria força para ultrapassar e algo a aprender. Reconhece duas aprendizagens: ter paciência e aceitar. «Não deixar de ir tomar banho no mar porque as pessoas vão olhar. Continuar a fazer aquilo que gosto. Quando consegui aceitar, fiz a minha vida normal».

Tirou o mestrado em Educação na ilha Terceira, onde sempre contou com o apoio dos amigos. «Nunca senti discriminação», garante. Escolheu um trabalho exigente, como professora do primeiro ciclo, e não se poupa a cirandar de volta das crianças. «Não consigo ensinar sentada à secretária», ri-se. Do marido sente um apoio incondicional, os pais moram mesmo ao lado e ajudam no que podem. Apesar do cansaço que ataca no final do dia, mal o corpo se permite uma pausa, Cátia prefere ter uma vida ativa. «Estar todo o dia em casa só me deprimiria e pioraria a doença».

Desde que recebeu o diagnóstico, conta com o apoio «fundamental» da Associação de Doentes com Lúpus. Sempre que se desloca a Lisboa para consultas e tratamentos fica alojada nas instalações da associação, mesmo no centro da cidade. «É uma segunda casa». As viagens frequentes são aproveitadas pela família para passeios pela cidade. Cátia gosta de ir às compras, o Tiago adora o Oceanário. Na Terceira, ocupam os sábados a fazer trilhos na Natureza. «Quando é preciso, fazemos paragens, mas não me coíbo. Ainda quero voltar a subir o Pico», declara, a ambição gigante a lembrar que somos do tamanho dos nossos sonhos.

 




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