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14 maio 2021
Texto de Maria Jorge Costa Texto de Maria Jorge Costa Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

«É preciso ligar as USF às farmácias»

​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​Perito em Saúde Pública defende cooperação, da vacinação das crianças ao controlo dos doentes polimedicados.​

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REVISTA FARMÁCIA PORTUGUESA: No passado dia 19 de Abril, o país saiu de dois meses de confinamento. Concorda com as medidas de desconfinamento?
CONSTANTINO SAKELLARIDES: O processo de desconfinamento começou na altura certa. E ainda bem. Já precisávamos. Acertado foi também o faseamento prudente, a monitorização permanente e as decisões quinzenais em relação ao prosseguimento ou não do que foi planeado, de acordo com a evolução da situação. Mas ainda persistem duas questões importantes por resolver.
 
Quais?
A primeira é o atraso da estratégia de testagem, que envolve quatro níveis. Temos de testar os contactos próximos dos infectados; depois, as pessoas em risco por proximidade de contacto frequente com o público, como profissionais de saúde, forças de segurança, quem está nas escolas, os que trabalham em supermercados, entre outros. Faltam dois: é preciso testar por amostragem, para saber por onde anda o vírus; e, finalmente, a testagem por iniciativa própria. A vacinação e a testagem são os dois grandes instrumentos disponíveis para o controle da pandemia. Não é boa prática iniciar o desconfinamento sem antes ter desenhado, ensaiado e iniciado a implementação da estratégia de testagem.
 

«Fechar ou abrir economias locais é suficientemente sério para justificar uma caracterização mais completa da situação epidemiológica local», deseja o médico especialista em Saúde Pública

E o outro problema?
A segunda questão tem a ver com os indicadores utilizados nas decisões associadas às várias fases do desconfinamento. Médias de âmbito nacional, como a taxa de incidência e o Rt, perdem relevância quando a incidência no país já é baixa e a transmissão só é particularmente significativa num número limitado de concelhos. Neste ponto é importante decidir em função de indicadores que incluem a taxa de incidência – preferencialmente a média de sete dias, a taxa de positividade dos diferentes níveis da estratégia de testagem, o desempenho da rede de Saúde Pública local nas acções de controle da transmissão e o tipo de transmissão observado. Uma coisa é ter um surto com 30 casos numa empresa, outra é o significado de 30 casos que resultam da circulação sustentada do vírus na comunidade. Fechar ou abrir economias locais é suficientemente sério para justificar uma caracterização mais completa da situação epidemiológica local.
 
Apesar dos atrasos, há dados animadores de vacinação em Portugal e esperança de aumento de imunidade de grupo. Está optimista?
Espero que no fim do Verão possamos estar próximos de uma imunidade de grupo aceitável. Não devemos, no entanto, esquecer que os altos níveis de transmissão actualmente registados em países como o Brasil e a Índia aumentam a probabilidade de surgirem novas variantes, e essas podem requerer a revacinação num tempo não muito distante. Por outro lado, não devemos aceitar como fatalidade incurável o atraso da vacinação na União Europeia quando comparada com a do Reino Unido e dos Estados Unidos, sabendo que a Europa concentra cerca de 75 por cento da capacidade global de produção de vacinas. Quanto melhor for o nível global da vacinação, melhor para todos.
 
O planeamento logístico da task force de vacinação melhorou?
Os centros de vacinação que frequentei funcionaram muito bem, em todos os aspectos. Há um nível notável de colaboração entre o SNS, os profissionais de saúde, as autarquias, as pessoas da protecção civil. Não podemos deixar de manifestar apreço por todo o trabalho já feito pelas nossas autoridades de saúde na gestão de uma situação tremendamente difícil como é sempre uma pandemia. Mas também não podemos deixar de insistir que este é um tempo de aprendizagem obrigatória.
 
Isso significa o quê?
A pandemia destapou múltiplas limitações, que algumas das nossas instituições manifestam há muito. Entre elas, o deficit no pensamento, na análise e no planeamento estratégico, a inexistência de uma cultura e de processos apropriados de aconselhamento científico para as decisões políticas. Não me parece que quer num tema quer no outro tenha havido melhorias assinaláveis. E para bem do nosso futuro colectivo seria bom que elas venham a ter lugar a breve trecho.
 
Multiplicam-se os países que envolveram as farmácias na estratégia política de testagem e vacinação. Concorda com o coordenador da task force, que quer as farmácias na campanha de vacinação?
Os primeiros tempos do programa de vacinação contra a COVID-19 foram bastante difíceis. Havia evidentes preocupações com as prioridades estabelecidas, poucas vacinas e problemas com as decisões relativas ao processo vacinal. Nestas circunstâncias compreende-se a limitação e um controlo mais próximo relativo aos locais de vacinação. Ultrapassada essa fase, faz todo o sentido a intenção do coordenador da task force de alargar o número de locais de vacinação para o mais próximo possível das pessoas. Neste domínio as farmácias têm uma posição privilegiada.
 
Testagem massiva é positivo? Várias autarquias, como Lisboa e Oeiras, e o Governo Regional da Madeira, fizeram protocolos com as farmácias. Concorda?
Sim, numa doença com um número significativo de infectados assintomáticos, saber por onde anda o vírus é de grande importância na gestão da pandemia. E a estratégia de testagem, que está a ser elaborada pela task force, deve proporcionar orientações nesse sentido, devendo tomar em linha de conta os protocolos que entidades locais estabelecem entre si, como aqueles que refere, para assegurar uma resposta local efectiva à necessidade de uma testagem massiva.

Já foi vacinado?
Sim, logo que nos chamaram, a minha mulher e eu, apresentámo-nos.
 
Como estamos a lidar com a pandemia?
Não há diferenças muito substanciais entre os vários países europeus em relação à forma como lidam com a pandemia. Outra coisa são os países asiáticos, que têm outra cultura e até outra experiência em relação a ameaças de Saúde Pública. A forma como lidamos com a pandemia tem muito a ver com a forma como decidimos em termos políticos e técnicos. Continuamos a ser, em grande parte, aquilo que fomos antes da pandemia, e não podemos de repente ser dinamarqueses ou chineses, continuamos a ser portugueses. Quando comparamos o que fazem os outros países e presumimos que vamos fazer o mesmo, não é verdade. E não é porque o Governo não queira, ou não saiba, é porque nós não funcionamos assim. Pode-se dizer que fazemos o melhor que podemos. Comparar com outros que fazem melhor é esquecer as diferenças de partida.
 
No regresso das escolas em Setembro as coisas correram bem. Como explicar o comportamento do Natal que nos levou aos números de Janeiro, e nos mandou dois meses para casa novamente?
A primeira razão tem a ver com a fadiga. Estamos cansados, muitos meses com estímulos constantes. A fadiga leva ao desencanto, ao protesto, ao desconforto. Isto afecta-nos, cria ansiedade e gera comportamentos pouco úteis. O nosso cérebro é praticamente o mesmo que era há 100.000 anos atrás. Nessa altura, o factor crítico selectivo da evolução da espécie era a capacidade de decidir instantaneamente se devíamos lutar ou fugir. Fugir de quem? De uma fera ou de uma tribo inimiga. Quem não conseguia decidir rapidamente e bem não sobrevivia. A espécie apurou o tipo de cérebro que é muito eficaz a decidir "agora é preciso fugir, agora é preciso lutar". Qual é o desafio actual? É estabelecer o equilíbrio do nosso comportamento entre protegermo-nos e viver. O que é mais ou menos a mesma coisa. Protegermo-nos é fugir do perigo, viver é continuar a lutar, a fazer as coisas certas. No mundo de sobreestimulação como o actual, nós recebemos esse estímulo constante que nos pergunta: fugimos ou lutamos? Mas não há nenhum leão à vista e nós reagimos com grande ansiedade a esta pergunta, porque não sabemos o que é melhor fazer para sobreviver à pandemia.
 
Desleixámo-nos?
A resposta à fadiga pandémica é muito importante neste momento, porque ensina-nos a compreender que temos de substituir a ansiedade por racionalização. O “nosso” António Damásio [neurocientista] explica, naquele famoso livro sobre a consciência, que pensar racionalmente, elencar os factos, tentar tratá-los e tomar decisões sobre esse equilíbrio que pareçam racionais, faz-nos bem biologicamente, além de fazer-nos sentir bem. Perceber melhor este fenómeno de consciência é perceber que a ansiedade é natural.
 
Para termos consciência precisamos de informação rigorosa e clara. Parece haver alguma desorientação na informação divulgada.
Portugal convive com diferentes conceitos de Saúde Pública: uma perspectiva mais tradicional, que tende a ser mais centralista e normativa, e outra mais moderna, que acredita na responsabilidade das pessoas, desde que bem informadas. Os sistemas de informação são o mais importante nesta equação. Nós pensamos com informação. As concepções têm de ser modernizadas e os sistemas de informação têm de ser reforçados. Essa é a resposta. 


«No meu bairro, a farmácia é o serviço mais frequentado. Vou lá, conhecem-me, sou muito bem atendido»

António Arnaut dizia que «as farmácias são o braço longo do SNS». Em 2020, pela primeira vez, o Ministério da Saúde fez uma parceria com as farmácias para vacinar contra a gripe as pessoas acima dos 65 anos, com o lote do SNS. Foi uma medida acertada?
O principal desafio da Europa chama-se envelhecimento e morbilidade múltipla. Mais pessoas mais velhas, com várias doenças de evolução prolongada, disfunções, algumas incapacidades, fragilidades, que exigem resposta muito diferente. A resposta é gerir o percurso das pessoas através de serviços eficazes, para que no fim de cada trajecto tenhamos bons resultados. Estamos longe dessa situação. E porque é que eu chamo este conceito na resposta à sua pergunta? Porque as pessoas têm de ir a vários sítios de saúde de uma forma coordenada. E quando vão a um sítio têm de saber como funciona o outro. E é por isso que o instrumento essencial para uma gestão do percurso dos doentes se chama Plano Individual de Cuidados, negociado entre o doente, ou utente, e o seu médico. O médico explica o que é mais importante para ser atalhado entre as várias situações que preocupam as pessoas e essa análise é partilhada por todas as “estações” que o cidadão tem de percorrer na procura de respostas. A farmácia é uma delas. Por várias razões: porque no meu bairro é o serviço mais frequentado, vou lá, conhecem-me, sou muito bem atendido.

 

 
Para isso a farmácia tem de integrar o sistema. 
Um aspecto associado à morbilidade múltipla é a multimedicação. É um problema muito sério. Não basta ter muitos medicamentos, é preciso saber utilizá-los e utilizá-los bem durante muito tempo. A farmácia é um dos pontos que as pessoas percorrem e, quanto mais integrada estiver nas necessidades dos utentes, melhor serviços presta. Para isso, é preciso uma ligação muito mais estreita entre as Unidades de Saúde Familiar e as farmácias. Porque o Plano Individual de Cuidados não é nem do farmacêutico nem do médico, é do cidadão. Este sim, é o modelo de Saúde realmente centrado nas pessoas. Se esta informação, dentro dos limites do que é razoável, fizer parte de uma partilha, o doente sente-se protegido e estimulado a fazer as coisas bem. Se nós pensarmos assim, aquilo que me pergunta é mais fácil. Se eu preciso de ser vacinado, alivio o centro de saúde sendo vacinado na farmácia. O mesmo em relação à vacinação das crianças.
 
Falou na questão da polimedicação. Há estudos que sublinham que em Portugal há elevados índices de abandono da terapêutica.
Nos países onde se tem pensado um pouco mais nisso, concluiu-se que a elaboração de um Plano Individual de Cuidados tem sempre de considerar a forma como a medicação afecta a vida das pessoas. É necessário não só diagnosticar, medicar, prescrever… É fundamental perceber, perguntar, se existe uma abordagem que melhor se adeq​úe à forma como cada pessoa vive. Mas isso só resulta se formos por aqui. Se continuamos com uma medicina fragmentada, cada um no seu território...​​
 
A forma como se gere o SNS parece partir de premissas ideológicas. Há resistência deste Ministério da Saúde relativamente ao sector privado?
Não acho que haja uma questão ideológica. Mas a questão de fundo não é bem essa, a questão de fundo é que, mediante dificuldades no SNS, se a opção for recanalizar verbas para o sector privado acaba-se com o Serviço Nacional de Saúde. E há vários exemplos disso no passado. É uma receita para acabar com o SNS. Accionar os mecanismos de cooperação com o sector privado, no sentido de complementar a sua acção, está certo. Mas sem com isso fazer com que no futuro esta incapacidade temporária se torne permanente.

 

 
Essa é uma responsabilidade do poder político.
O Estado não tem sido capaz de criar o enquadramento desta relação e actua reactivamente. E a pior coisa para o SNS é um Estado que não antecipe, não crie as regras de jogo. Dizer: «Nos próximos x anos a cooperação com o sector social e privado vai ser desta natureza, porque é o que melhor serve o interesse das pessoas e o desenvolvimento do SNS como garantia a todos, independentemente da condição económica». Se não o fizer desta forma, e não o faz, o que acontece é que aparecem circunstâncias que pressionam o Estado a ceder, o que cria uma tensão permanente entre os sectores. As duas realidades existem, mas é forçoso conseguir uma cooperação entre os sectores público, social e privado, que seja razoável face às circunstâncias.
 

«Tenho insistido junto do Ministério da Saúde que nos falta uma estratégia de médio prazo, mesmo para a situação de pandemia», declara Constantino Sakellarides

Voltemos à pandemia. O que podíamos fazer melhor neste momento?
Eu tenho insistido junto do Ministério da Saúde que nos falta uma estratégia de médio prazo, mesmo para esta situação. Já nem falo do Plano Nacional de Saúde. Vamos enfrentar três fases. Temos este período da vacinação, que é muito difícil e sabemos que vai ser prolongado. Não se vai vacinar toda a gente num instante. E esse período também é complexo, porque mistura pessoas que já estão protegidas com pessoas que ainda não estão. Depois deste tipo de vacinação, temos a fase pós-vacina. Temos de assegurar que não regressamos ao passado, temos de avançar para o futuro. Mas regressaremos ao passado se não formos preparando hoje o que deve ser feito nessa altura. Isso chama-se um plano a médio prazo. Uma estratégia a médio prazo. Não a temos ainda.
 
É uma incapacidade portuguesa?
Não temos um espaço que faça isso, objectivamente. Tem de haver uma linha de combate imediato e outra de pensamento que pensa o futuro, para quando lá chegarmos reagirmos a tempo e preparados. Há muita ciência sobre como é que isto se monta. Não está montado e precisamos de o fazer.

 

 
Ter capacidade para reagir e planear numa emergência como a pandemia é difícil.
Claro que numa emergência falar dessas coisas é um pouco irritante. Ou esses dispositivos estão montados quando estamos fora da emergência e depois aproveitamo-los, ou é difícil criar na emergência. Mas temos de criar pelo menos um embrião para esse pensamento estratégico. Nós fazemos planos, mas o plano quando não é integrado pelas pessoas e pelas instituições é só papel.
 
As vacinas são seguras?
Essa é uma questão muito importante e eu fico muito espantado em relação à discussão que há aí sobre as vacinas. As pessoas têm de saber que quando um organismo regulador do licenciamento da vacina diz que ela é segura, é porque é segura. Quando diz que é eficaz, é eficaz. Temos de ter confiança nas instituições que foram criadas para este efeito. São extremamente bem equipadas, com técnicos independentes.
 
Mas como é que as pessoas se sentem seguras quando há avanços e recuos na decisão sobre vacinas?
As noções de segurança e eficácia são relativas. São seguras dentro dos termos razoáveis de segurança. Qualquer medicamento não é mil por cento seguro. Há sempre um risco associado a qualquer coisa. O raciocínio é este: o risco ser inferior ao benefício. É preciso olhar para o conceito de segurança desta forma, que é um conceito relativo, mas essa relatividade é tratada de uma forma séria. É segura para mim. É eficaz? Sim, mas é relativo. Eu sei que o meu sistema imunológico, na minha idade, reage muito pior do que na sua. Mas é eficaz cem por cento? Não, nunca é eficaz cem por cento.
 
Desconhecemos o tempo de imunidade.
É verdade, mas dê-me agora uma dessas vacinas e passamos para outro patamar. A desconfiança em relação às vacinas tem de ser remetida, numa democracia, não só para a confiança da impermeabilidade do regulador a outros interesses, como para o entendimento dos protocolos que se adoptam em circunstâncias de emergência. Não são inventados à pressa, já existiam antes da pandemia, e previam passos e procedimentos.
 


O homem da Primavera
 
Constantino Sakellarides é licenciado em Medicina pela Faculdade de Medicina de Lisboa e doutor em Saúde Pública pela Universidade do Texas, EUA. A sua carreira, académica e profissional, tornou-o um dos portugueses mais qualificados no estudo e desenvolvimento de sistemas de saúde. Foi director para as Políticas e Serviços de Saúde da Organização Mundial da Saúde (Região Europeia). Foi director-geral da Saúde, director e professor catedrático da Escola Nacional de Saúde Pública, e director do Centro de Saúde Sofia Abecassis, em Lisboa. Fundou e coordenou o Observatório Português dos Sistemas de Saúde, que desde 2001 publica os célebres Relatórios de Primavera, sobre os efeitos das políticas públicas no estado da Saúde em Portugal. Foi presidente da Associação Portuguesa para Promoção da Saúde Pública e da Associação Europeia de Saúde Pública.