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10 outubro 2020
Texto de Vera Pimenta Texto de Vera Pimenta Fotografia de Ricardo Castelo Fotografia de Ricardo Castelo

Desta água beberei

​​​​​Água mais pura de Portugal brota do chão a 76 graus.

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Há cerca de mil anos, chovia no planalto da Pedra Bolideira. Na profundidade da terra quente de Trás-os-Montes, a água foi adquirindo os minerais das rochas encaixantes e percorreu 17 quilómetros até Chaves. O trajecto de um milénio permite hoje mergulhar na água mais pura de Portugal, que brota do chão a 76 graus.

Todos os anos, milhares de aquistas visitam a região, à procura das propriedades terapêuticas e medicinais da água mais quente da Península Ibérica. Nas Termas de Chaves alivia-se doenças inflamatórias, degenerativas ou pós -traumáticas. E esquece-se a azáfama do dia-a-dia.

Além de indicadas em patologias musculoesqueléticas, as propriedades minerais da milagrosa água têm também o poder de aliviar problemas do aparelho digestivo e até do respiratório, como a bronquite, a sinusite, a asma ou as alergias.

«Muitas vezes as pessoas associam essas doenças à terceira idade, mas isso é um engano» - desmistifica Fátima Pinto, administradora das Termas de Chaves. A profissional garante que diariamente lhe chegam às mãos pessoas de todas as idades. E os resultados falam por si. «Temos uma taxa de sucesso alta, principalmente nas crianças em idade precoce que, através de tratamentos preventivos, chegam a conseguir mesmo ultrapassar as patologias respiratórias» - explica.

Os romanos foram o primeiro povo a perceber que, ao mergulhar nessa água milenar, recuperavam rapidamente das mazelas sofridas durante as longas caminhadas e épicas batalhas. Essa descoberta haveria de impulsionar o crescimento da cidade em torno das termas. Mas a herança romana não fica por aqui.


Em 2005, foi descoberto um balneário termal, da época romana, em pleno centro da cidade

Em pleno centro histórico, num mural ao fundo do Largo do Arrebalde, pode ler-se: Aquae Flaviae. O nome com que os romanos baptizaram a actual cidade de Chaves denuncia o local onde está guardado um dos maiores tesouros da cidade, descoberto por mero acaso em 2005.

«Durante a construção de um parque subterrâneo, surgiu um balneário de termas romanas que, depois de limpo, começou a funcionar como há 2.000 anos», relata o farmacêutico flaviense Afonso Castro.

Hoje supõe-se que esse património histórico, único na Europa, tenha sido destruído durante um sismo que abalou a cidade no século IV. Quando a abóbada do balneário desabou, criou-se um tampão de oxigénio que fez com que o balneário termal se mantivesse nas mesmas condições até aos nossos dias. A curto prazo, o plano é abrir o surpreendente espaço ao público, enquanto Museu das Termas Romanas de Chaves.


Casas coloridas enfeitam as ruelas do centro histórico

Ao seu redor vislumbram-se casinhas de todas as cores, que iluminam alegremente as pitorescas ruelas do centro. Nos vários andares, varandas de madeira em tons garridos abraçam os edifícios. «Diz-se que, antigamente, devido às casas serem tão pequenas, as varandas eram uma forma de aumentar o espaço», conta Afonso.


«Chaves é o sonho de qualquer turista», garante o farmacêutico Afonso Castro
 
A viver em Chaves desde 1985, o farmacêutico de 59 anos tem memória das mudanças que o tempo foi trazendo à cidade. E garante que o casamento entre a História e a modernidade tornam Chaves no sonho de qualquer turista. «Não sou só eu que o digo» – afirma – «O número de dormidas cá supera o somatório de muitas das maiores cidades da nossa região».

Muralhada desde a época romana, Chaves mantém ainda hoje os vestígios da sua importante fortificação em tempos de conquistas. «A cidade estava protegida por muralhas, com algumas portas de entrada» - explica Afonso - «sendo a mais conhecida a Porta do Anjo, que dá acesso à principal rua da cidade».


D. Afonso, fundador da Casa de Bragança, ainda hoje reina no centro da cidade

No topo da colina da Pedisqueira, o Forte de São Francisco continua a vigiar a cidade. Palco de históricas batalhas medievais, desde 1997 que a sua principal missão é albergar os turistas, que se deleitam com a história daquele que é agora um dos mais conhecidos hotéis da cidade.

Bem muralhado está também o Castelo de Chaves, estrategicamente posicionado no centro da cidade. Do imponente edifício românico, mandado construir por Afonso III das Astúrias no século IX, resiste ainda uma das torres. «Nesta parte monumental da cidade, num passeio de poucos metros, é possível visitar o castelo, o Museu da Região Flaviense e duas das nossas mais bonitas igrejas» – revela o farmacêutico.


A Ponte de Trajano é uma das grandes obras de engenharia dos romanos que resistiram até aos nossos dias

Do cimo da torre de menagem, a paisagem pintada de azul e verde deixa-se completar pela ciclovia que acompanha o rio Tâmega ao longo de sete quilómetros. Ao fundo do vale serpenteado pelo rio, avista-se a Ponte de Trajano, ponto de união das duas margens. Pisá-la é pisar o mais importante legado romano deixado aos flavienses.


A torre de menagem oferece uma visão espectacular do vale e do rio
 
Em volta, as margens da cidade encontram-se no reflexo da água. E a tranquilidade do Jardim Público de Chaves convida a sentar nos seus bancos, a contemplar o rio e todo o panorama envolvente.

Na margem direita, o moderno Museu de Arte Contemporânea Nadir Afonso (MACNA), projectado por Siza Vieira, ergue-se imponente nas suas linhas rectas. Lá dentro celebra-se a genialidade deste pintor flaviense, entre quadros que expressam a sua paixão pela matemática e a geometria.


No MACNA é celebrada a genialidade do reconhecido artista flaviense Nadir Afonso
 
Agostinho Pizarro é um orgulhoso funcionário do MACNA. «O museu é uma homenagem da comunidade flaviense e da câmara municipal à genialidade de Nadir Afonso» - explica - «este conjunto arquitectónico está instalado num local paisagisticamente privilegiado, ideal para expor as obras do nosso grande mestre».

Aberto ao público em 2016, o espaço conta com uma exposição permanente dedicada à vida e obra de Nadir, bem como exposições temporárias de grandes nomes do panorama artístico nacional. «Eu diria que a qualidade do museu é o somatório do pintor que este celebra e do seu ​projectista», sublinha Afonso Castro, convidando à visita.


Restaurante Carvalho põe à mesa a essência de Trás-os-Montes
 
O Restaurante Carvalho, muito acarinhado na região, era um dos favoritos do artista. Numa das muitas visitas, Nadir chegou até a deixar uma dedicatória no livro de honra que a casa mantém até hoje. As portas abriram em 1992, dando as boas-vindas a uma cozinha familiar, genuína e sem pretensões.

Manuela Carvalho, de 46 anos, partilha a gerência com a mãe e a irmã. E fala com carinho deste sonho do seu pai, que haveria de ficar nas suas mãos muito cedo, por fatalidade da vida. «O meu pai faleceu com 46 anos, sem aviso, numa operação que tinha tudo para correr bem» - recorda, emocionada - «Apanhou-nos a todos de surpresa, mas nunca parámos».

O seu lugar preferido é atrás do balcão, onde pode ver toda a sala. Dali, gosta de ler nas expressões dos convidados o que lhes vai na alma. Nos bastidores, cabe-lhe gerir o negócio da família, honrando o nome do pai e os valores com que cresceu.

A cozinha sempre foi território da mãe. Fá-lo de forma genuína, sem grandes molhos ou artimanhas.

A simplicidade permite respeitar o produto e as suas origens, que são sempre próximas. É que as mãos que cozinham são as mesmas que produzem os enchidos e cultivam os vegetais.

À mesa chega a essência de Trás-os-Montes, sob a forma de nacos de vitela no borralho, arroz de cabidela, alheira ou o famoso arroz de fumeiro. Mas no menu também há espaço para o inesperado. Por isso é que, todos os dias, há pelo menos um prato com o peixe mais fresco que o mar dá.


Chaves é conhecida pelos folares e enchidos regionais

Dos restaurantes às pastelarias tradicionais flavienses, o farmacêutico Afonso Castro avisa, em tom de brincadeira, que em Chaves é particularmente complicado manter a linha. Presunto, folar, enchidos e queijos são algumas das iguarias transmontanas que fazem os deleites dos visitantes. No pódio, contudo, cabe apenas um vencedor.


A receita do pastel de Chaves terá sido comprada em 1892, por uma libra

A história do pastel de Chaves transporta-nos até 1892. Reza a lenda que uma vendedora misteriosa vagueava pela cidade com uma cesta à cabeça, recheada de estaladiços pastéis de carne. Ao ver o sucesso que estes folhados faziam entre os flavienses, a proprietária de uma pastelaria de Chaves comprou a receita à mulher por uma libra. E assim nasceu o ícone de pastelaria da região.

Helena Carvalho, dona da loja D’Chaves e especialista no fabrico do pastel, acredita que o segredo possa estar na crocante massa folhada de três voltas que envolve a carne de vitela estufada. E, claro, na qualidade dos ingredientes.
  
O espaço, inaugurado em 2015 no centro da cidade, é o culminar de uma vida dedicada à produção de especialidades regionais. «O que mais se vende são os enchidos, o presunto e o folar de Chaves. Mas o rei desta casa é, sem dúvida, o pastel de Chaves», conta, orgulhosa.

Dos clientes habituais aos turistas ocasionais, em tamanho normal ou em miniatura, o delicioso pitéu é um sucesso que já leva o nome de Chaves pelo mundo fora. Com as vendas a crescer a cada ano, a produtora, de 47 anos, garante que a tendência é para a popularidade continuar a aumentar. Aos novatos, deixa um conselho: «Nada de talheres. O pastel deve ser comido bem quente e sem cerimónias».


Na buvette das termas, todos são convidados a beber um copo de água

Ao fim de uma refeição, a buvette das termas é paragem obrigatória. Atrás do balcão de mármore, uma simpática senhora pergunta entre sorrisos: «Vai um copinho?».

A água termal serve-se directamente da fonte. Flavienses, convidados e curiosos esperam que a bebida arrefeça entre dois dedos de conversa. Sentados nas velhas cadeiras brancas de madeira que tantas gerações já viram passar.

Gole a gole, afoga-se a solidão, abranda-se o ritmo e acalma-se a digestão. No coração transmontano é proibido dizer «desta água não beberei». E sabe-se que quem a bebe está destinado a regressar.
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