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4 março 2018
Texto de Sónia Balasteiro Texto de Sónia Balasteiro Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

Cidade de luxo

​​​​​​​​​​​Uma viagem por Estremoz.

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​Bastaram poucos dias de chuva para cobrir os campos que rodeiam Estremoz, a “cidade branca” do Alentejo, de verdes, amarelos, lilases. O casario, do topo do monte aos arrabaldes da cidade, mostra-se impecavelmente branco, a cor do mármore que jaz nas profundezas desta terra, e também a das casas, respeitando a ancestral tradição de caiar as paredes. O frio, esse entra roupa adentro, ignorando os casacos mais resistentes.

José Carlos Cortes, cicerone pelas terras onde sua majestade a rainha Santa Isabel terá cumprido o milagre das rosas, há mais de 800 anos, perante a incredulidade de D. Dinis, seu esposo, ignora as baixas temperaturas. Está habituado. E logo mostra como o gosto alentejano de bem receber as compensa, aquecendo o coração de quem chega. Orgulhoso, o veterinário, 49 anos no sorriso rasgado, começa a visita perto do castelo, outrora habitado por D. Dinis e Isabel, que terá visto transformar-se em rosas o pão que levava no regaço para os pobres, evitando com o “milagre” a ira do rei.

Na zona histórica da cidade, vamos conhecer uma expressão única do modo de vida nestas terras do Alto Alentejo: os bonecos de Estremoz, o único figurado distinguido como património cultural imaterial pela UNESCO. Entramos no ateliê dos artesãos Afonso e Matilde Ginja, na Rua Direita.

A distinção, envaidece-se Afonso Ginja, sem dar azo a dúvidas, «é uma prenda pêlos 40 e não sei quantos anos a fazer bonecos». Enquanto fala com o veterinário que conhece de sempre, continua a esculpir com toda a minúcia uma cabeça em barro, que juntará a outras partes para formar o todo.


 Afonso Ginja faz bonecos de Estremoz há mais de 40 anos
 
Ouve-se, das traseiras, o ladrar de Lua, o Labrador, a reconhecer o veterinário. «Quer festas», diz Matilde, que pinta todos os bonecos esculpidos pelo marido. Há ceifeiras, pastores, a Nossa Senhora do Ó, um ou outro presépio, o Amor é Cego, a Primavera com Plumas, com os mesmos traços do século XVIII.
 
«Ali era a antiga alcaidaria», aponta José Carlos, ao sair do ateliê.  
É hora de almoçar e o guia conhece o lugar ideal para saborear a cozinha alentejana, «sempre na ponta da unha»: a Adega do Isaías. Queixada de porco, migas alentejanas e outros sabores tradicionais reclamam estômagos fortes e fornecem a energia necessária para continuar o passeio pela cidade branca.

Não se pode visitar Estremoz sem conhecer-lhe o coração. Serpenteando pelo casario branco da zona histórica, chega-se ao luminoso Largo D. Dinis, com o castelo construído pelo rei e sua esposa no século XIV como protagonista. A antiga sala de audiências de D. Dinis, ao lado da Igreja de Santa Maria, conserva a magnífica fachada gótica. Lá dentro expõe-se saberes locais.

Seguindo pelo átrio da Pousada da Rainha Santa Isabel, acede-se à única torre de menagem portuguesa feita em mármore branco. Somos aconselhados a ter cuidado ao subir pelas escadas: «Estão escorregadias devido à chuva miudinha que caiu nos últimos dias».

Passamos pelos antigos aposentos da rainha Santa Isabel, a meio da torre, com os tectos abobadados, e continuamos até ao topo. Do cimo da torre, que serviu para «resistir às invasões francesas», vê-se quilómetros e quilómetros de planície, entrecortada pelos montes de três serras: a mais próxima, a Serra d’Ossa; a Norte, a imponente Serra de São Mamede, fronteira natural entre a Beira Baixa e o Alentejo; a Sul, a cem quilómetros, a de Portel. Com tanta amplitude de visão, não admira a função estratégica de Estremoz em tempos idos.

No resto da cidade, o precioso e raro mármore branco é ainda hoje rei e senhor, apesar de ter cedido o protagonismo económico à produção de vinho, reputado como um dos melhores do mundo. A torre de menagem é apenas um dos lugares onde o material, vindo do coração da terra, foi utilizado. Está por todo o lado: nas ruas, nas estátuas públicas, na toponímia, nos lancis, nos passeios, nas estruturas dos lagos. «Henrique Silva desde 1974», como o próprio se apresenta, é a pessoa ideal para contar esta história. É o encarregado da oficina de cantaria municipal, instalada às portas da cidade, na estrada que liga a Vila Viçosa.
 

 Uma pedreira de mármore branco
 
A pedreira, instalada em terrenos municipais, com os seus 90 metros de profundidade, impõe respeito. «É explorada pelo Grupo Galrão», introduz Henrique, explicando que da sua oficina saem todas as estruturas municipais em mármore, feitas com os restos dos blocos extraídos da pedreira. «As últimas pedras colocadas na Fonte das Bicas, no Largo do Gadanha, já foram feitas por mim», conta o funcionário, feliz pelas visitas e por mostrar o ofício de toda a vida. «Quando passam por aqui, os franceses chamam a Estremoz “cidade de luxe”».

No centro, no Rossio do Marquês de Pombal, está o Convento das Maltesas, que albergou a Ordem de Malta e o antigo hospital. Hoje, é sede do Centro Ciência Viva de Estremoz, à espera de revelar os segredos do universo. Além da exposição com a história geológica da Terra, o centro dispõe de informações para percorrer o único sistema solar à escala da Península Ibérica. O Sol fica à porta do convento, os planetas vão da cidade a outros lugares, como São Bento do Cortiço, replicando a distância exacta entre si.

 

 Mesmo às portas da cidade, respira-se o ar do campo e descobre-se ovelhas sob a neblina​
 
Uma forma diferente de conhecer estas terras de planície e montes, onde, de madrugada, é fácil cruzarmo-nos com um pastor e o seu rebanho, e esquecer toda e qualquer pressa. Ouvindo os chocalhos das ovelhas e vendo o sorriso do guardador no cumprimento ao passar, respirando o ar limpo do campo, entende-se as palavras de José Carlos: «Ser alentejano é um viver devagar». Esse é o verdadeiro luxo.
 
 

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