Política de utilização de Cookies em Revista Saúda Este website utiliza cookies que asseguram funcionalidades para uma melhor navegação.
Ao continuar a navegar, está a concordar com a utilização de cookies e com os novos termos e condições de privacidade.
Aceitar
9 julho 2021
Texto de Sandra Costa Texto de Sandra Costa Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro Vídeo de André Oleirinha Vídeo de André Oleirinha

Chamem-me brisa

​Viagem ao maravilhoso Algarve atlântico. ​

Tags
Quando as sombras se alongam no chão e o calor demencial abranda, a vida começa a sair dos esconderijos. Andorinhas e pardais renascidos desvairam no céu muito azul, compondo a banda sonora do Verão. É hora de regar os pomares de laranja sedentos e estender a roupa nos varais. Respirar. Ao largo da igreja chegam vozes vindas da esplanada do Café Central, anunciado num letreiro de western, mesmo ao lado da Farmácia Nova. Quando a brisa que corre entre as árvores deixar de ser um bafo quente, é provável que venha gente sentar-se à sombra, nos bancos de madeira, enquanto crianças deslizam no escorrega. O jardim cuidado convida ao descanso, com as árvores vestidas de croché, tricotado por idosos da aldeia, e a igreja branca encimada, lado a lado, pela cruz e um cata-vento. A toda a volta, o miradouro sobre a serra de cerros suaves, casinhas brancas com quintais e inconfundíveis chaminés algarvias. No centro, o busto de António Bernardino Ramos lembra o médico que no século XX fez nascer quase toda a gente do concelho e pagava os medicamentos a quem não podia comprá-los. 


No largo da igreja de São Marcos da Serra, junto ao miradouro sobre a serra, o jardim cuidado convida ao descanso

São Marcos da Serra é um bom exemplo da combinação de dois mundos que dá identidade ao concelho de Silves. Há mar e turistas, como no resto do Algarve. E há muitas aldeias e vilas pacatas, espalhadas pela serra e pelo barrocal. Estão povoadas por algarvios que procuram habitação mais barata, mas também por alemães, holandeses e ingleses atraídos pelo sol e o sossego. Uns vieram gozar os anos da reforma, outros investir em negócios agrícolas, como o holandês que se tornou um dos maiores produtores mundiais de bonsai. 

A psicóloga clínica Helena Pinto nasceu em Trás-os-Montes e veio descendo, até aterrar há 16 anos em São Bartolomeu de Messines. Prefere a genuinidade e o espírito comunitário do Interior ao bulício do litoral. No seu mapa particular, Silves está no centro do «nó de ligação entre o Barlavento e o Sotavento». Messines é o ponto de entrada no Algarve por auto-estrada, Tunes por comboio.  


Em São Bartolomeu de Messines, a Casa-Museu João de Deus homenageia o poeta e pedagogo que, em 1876, publicou a “Cartilha Maternal”

Messines é ainda a casa natal de João de Deus, poeta e pedagogo que, em 1876, publicou a “Cartilha Maternal”, método de ensino para combater o analfabetismo. «Não posso ser verdadeiramente homem sem saber ler», dizia o humanista, cuja vida e obra é recordada na casa onde cresceu, ao lado da bonita igreja matriz construída em cal e grés.  


A psicóloga Helena Pinto no baloiço panorâmico do Pico Alto, perto de Messines, com vista para as serras do Caldeirão e de Monchique, o mar entre ambas

A brisa agora é fresca e o céu cobre-se de tons rosa. As mesas de madeira escura da esplanada do Café Académico, em Messines, enchem-se de gente animada, conversas que se misturam em línguas diferentes. Sempre alegre, Fábio Costa vai trazendo rodadas de cerveja, pratos de marisco e pica-pau do mar. É da mulher e dele o negócio que junta ao café e restaurante uma guesthouse que ocupa o edifício vermelho-escuro, de 1893, e outras pequenas casas em redor do Largo da República, em traça algarvia, das poucas que escaparam ao desordenamento urbanístico.  


A empresa de doces regionais de Marília Louçã produz desde bolos de amêndoa fina, com forma de frutos e animais coloridos, aos famosos D. Rodrigo, e tortas de amêndoa e alfarroba

É difícil fugir ao turismo, mas há quem o faça: Lília Lopes escolheu ser ceramista, Marília Louçã gere uma empresa de doces regionais, Jorge Lima abandonou a profissão de chef de cozinha para reanimar a destilaria familiar, que produz licores e aguardentes com os sabores do Algarve: figo, alfarroba, medronho e amêndoa. Há jovens a dedicar-se à apicultura e agricultura. Helena Pinto lembra com gosto os terrenos abandonados entretanto transformados em pomares, sobretudo de abacate e laranja, que justificam o slogan “Silves, capital da laranja”. Uma laranja diferente da do resto do Algarve, «parece que tem açúcar». Nos campos que correm à beira das estradas surgem outras culturas: alfarroba, dióspiro, romã, amêndoa, oliveira, sobreiro. Na terra vermelha do grés de Silves nascem também resorts de golfe e parques aquáticos.  


Ao longo das estradas correm pomares de laranja. A laranja de Silves é diferente da do resto do Algarve, «parece que tem açúcar»

Edite Alves, proprietária da Adega João Clara, é outro exemplo de quem largou o turismo para abraçar um sonho. Trabalhava como guia intérprete, em 2008 a doença do marido levou-a a dedicar-se ao projecto vinícola. A troca não lhe custou. «Apaixonei-me completamente», revela. Com as filhas fez crescer a marca João Clara, a primeira a reavivar a casta negra mole, a segunda mais antiga do país e a mais típica do Algarve. Todos os anos, os vinhos João Clara trazem medalhas dos concursos internacionais em que participam.  


A praia de Armação de Pêra, onde a população quadruplica no Verão, continua a ser uma vila piscatória

Na linha do litoral, Armação de Pêra é a estância balnear do concelho. No Verão, a população quadruplica, mas continua a ser uma vila piscatória. Pela areia da praia espalham-se barcos com nomes de gente, redes e gaiolas de apanhar polvos. Homens com a pele curtida de sol e sal preparam as redes, sob a supervisão atenta das gaivotas. Aqui pesca-se todo o ano, «se o mar deixar», confirma José Martins, conhecido por José Pelé. Gosta desta vida: ar puro, ver o sol nascer e a lua a pôr-se, não ter um patrão a chatear-lhe a cabeça. «Não é para toda a gente. É bonito».  


Antes de ser cristão, o castelo de Silves foi uma alcáçova

A meio caminho entre a serra e o mar, o castanho avermelhado do castelo sobressai no casario branco. Em Silves respira-se a cultura islâmica que marcou o apogeu da cidade durante cinco séculos, até à conquista cristã, em torno de 1248. A herança é celebrada a cada Agosto na Feira Medieval e vivida diariamente na arquitectura, na enorme quantidade de palavras com origem no árabe, na gastronomia e até «na fisionomia de algumas pessoas». A arqueóloga Maria José Gonçalves, responsável pela área do património no município de Silves, domina os detalhes da história que ajudou a descobrir, de joelhos no chão.  


Na Praça Al'Mutamid, estátuas de António Quina simbolizam o mercado árabe


No edifício camarário, a cúpula dourada em estilo neomudéjar, atesta a herança árabe


No Museu Municipal de Arqueologia de Silves, há uma cisterna muçulmana do período almóada

Na Praça do Município, a que se acede por uma das portas da cidade, a presença do Magrebe sente-se na água que jorra no chafariz, nos tons ocre e nos arcos abobadados que criam sombra sobre a esplanada do Café DaRosa, na arquitectura mourisca do coreto desenhado por José Alberto Alegria, ele próprio mordido pelo «bichinho da cultura árabe». Na Praça Al'Mutamid, estátuas de António Quina simbolizam o mercado árabe, no edifício camarário existe uma cúpula dourada em estilo neomudéjar. Antes de cristão, o castelo foi uma alcáçova. No Museu Municipal de Arqueologia há uma cisterna muçulmana do período almóada e muitos objectos do quotidiano que atestam a ocupação humana desde a Idade do Ferro.  

Sentadas na esplanada do Café Inglês, Helena Pinto e Maria José Gonçalves pedem gaspacho e sumo de laranja. O espaço nasceu nos anos 80, num edifício de traça algarvia e amplas janelas, nas escadinhas de acesso ao castelo. Do terraço decorado com buganvílias fúchsia vê-se o castelo e toda a cidade. Maria José conta que no mercado de Armação de Pêra, onde vai ao sábado de manhã, se compra peixe fresquíssimo. Helena confirma que à gastronomia do mar se junta a da serra, «comida de mão cheia, de panela», como o javali, a galinha com grão, os ensopados, os milhos, o xerém, o cozido de couve com carne. No final da refeição, a casa oferece as sobremesas, à base de figo e amêndoa, como não podia deixar de ser. A brisa corre entre as árvores, os risos e as conversas soltam-se nas mesas em volta, a vida feita de estar, a recordar o melhor que o Verão algarvio tem para oferecer.​​

 

Notícias relacionadas