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14 outubro 2019
Texto de Maria João Veloso Texto de Maria João Veloso Fotografia de Miguel Ribeiro Fernandes Fotografia de Miguel Ribeiro Fernandes

Chamando pelos nomes

​​​​​​​​Os mais velhos não arredam p​é da terra que os viu nascer.

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Posto farmacêutico móvel de Cachopo - Cachopo, Tavira

Aldeia de Cachopo, concelho de Tavira, terça-feira de manhã. O vento dá conta das ruas vazias ali para as bandas da Igreja Matriz de Santo Estevão. As lonas verde-escuro que testemunham restos de festa parecem levantar voo. Das nove crianças que habitam esta aldeia serrana situada num vale da Serra do Caldeirão nem um assobio. Só se escuta de forma longínqua o chiar do galo do catavento no alto do campanário da igreja.

Numa casinha térrea caiada, tipicamente algarvia, uma placa anuncia: “Posto Farmacêutico Móvel de Cachopo. Directora-técnica: Dra. Célia Maria Teixeira Viegas”. Cada nome aqui importa. Os nomes dão alma a esta aldeia com menos de 200 pessoas, onde casas floridas alternam com ruínas e moradias vazias à procura de novos proprietários.

Os dados da Junta de Freguesia incluem a população que vive em montes espalhados pela serra. Ao todo serão 540 eleitores e mais umas 20 crianças, que durante o período escolar se dividem entre as escolas de Martim Longo, no concelho de Alcoutim, e Tavira. 

Teimosos, os mais velhos não arredam o pé da terra que os viu nascer, crescer e constituir família. Depois, assistiram à partida em massa dos filhos para as cidades ou o estrangeiro, à procura de melhores condições de vida. Às terças e sextas-feiras de manhã, estes resistentes aliviam as doenças do corpo e da alma no posto farmacêutico móvel.

Sem tirar nem pôr, é o caso de Custódia Campos Fernandes, 77 anos. Depois de uma vida de trabalho, no campo e no centro de dia, subiu-lhe a tensão arterial e tornou-se doente crónica. Noutros tempos, «corria os montes fazendo limpeza e comida». Agora, é diferente. «Os velhos não conseguem andar por aí», desabafa. Aprecia ter um posto farmacêutico na aldeia porque poupa dinheiro em táxis e rentabiliza o investimento em consultas. «A Dra. Célia é formidável, explica tudo direitinho quando volto confusa do médico», elogia Custódia.


Com menos de 20 metros quadrados, o posto depressa se enche de pessoas. Uns clientes têm pressa, outros tempo para gastar​
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Com menos de 20 metros quadrados, o posto depressa se enche. Às terças, há mais movimento, porque uma entidade bancária também abre as portas nesse dia. José Teixeira anda numa azáfama, entre os balcões do banco e do posto farmacêutico. Parece apressado, há vários clientes assim. Outros têm tempo para a conversa. Falam do frio e o vento “malino” – expressão local que significa maligno.

Com 84 anos, José é pastor de profissão. No monte de Estevais, aguarda-o um rebanho de 35 cabeças. Nos olhos, esperam as cataratas para serem operadas. Veio buscar uns pingos para deitar na vista. «Só a partir das cinco horas vou dar pastagem, agora estou aqui folgando», relata o pastor.


«Agora trato dos bichinhos e da horta, não posso fazer trabalhos maus», lamenta Isabel Barão, doente cardíaca

Questionada sobre a importância do posto farmacêutico, Isabel Barão estende duas receitas cheias de medicamentos que trouxe para aviar. Toma dois comprimidos de manhã e quatro à noite, é doente crónica. Era funcionária do lar. Há sete anos, o coração resolveu dar-lhe o que fazer. Foi operada. Teve de meter baixa, até hoje. «Agora trato dos bichinhos e da horta, não posso fazer trabalhos maus», lamenta.

Veio acompanhada pelo rafeiro Bob, que a segue para todo o lado, e pela neta de oito anos, que brinca com a situação da avó. «Tem a vida governada. Acorda quando calha, depois almoça e faz a folga», descreve Matilde, bastante despachada para a idade.

A horta está viçosa. Dá tomate, couve-portuguesa, alho-francês, abóbora, e um sem-fim de ervas de cheiro e muita criação. «Só comemos carne daqui, não há perigo de nos porem no prato gato por lebre», orgulha-se Isabel Barão, que conta com a ajuda dos filhos para tratar dos animais. Como tem casa a poucos metros do posto, decide voltar mais tarde, depois da farmacêutica atender esta pequena multidão de olhar triste e solitário.


Sandra Amâncio gostaria que o posto abrisse todos os dias

«Por mim, acho que o posto devia estar aberto todos os dias», afirma Sandra Amâncio, 42 anos. Trabalha há 21 na Junta de Freguesia de Cachopo. Meia vida a lidar com as necessidades dos outros moldou-lhe o discurso. Elogia a paciência e a dedicação da equipa da Farmácia Caimoto, que duas vezes por semana vem de Alcoutim trabalhar no posto. Destaca a camaradagem e a entreajuda entre todos, própria das comunidades mais isoladas.​​

Célia Viegas aconselha, explica, ouve as histórias de cada pessoa

Célia Viegas dispensa medicamentos, aconselha, explica, ouve as histórias de cada pessoa, preocupa-se com cada caso. Sofre com as indisponibilidades de mercado, chega a pedir medicamentos emprestados a outras farmácias. Vende fiado, porque não há alternativa. «Temos de saber responder às necessidades das pessoas», resume a farmacêutica. «Aqui, todos temos de ajudar, a maior parte dos habitantes já têm uma certa idade e vivem aqui sozinhos», intervém a presidente da Junta de Freguesia, Otília Cardeira. Depois de aviar um saquinho de medicamentos, Maria Serafina Afonso pede a palavra. «Moro na Fonte do Corcho. Viviam lá 22 pessoas e agora fiquei eu lá sozinha», lamenta a mulher.

Na memória colectiva persiste o cheiro das laranjeiras em flor. A agricultura de subsistência. A fonte férrea, que era lugar de eleição para os algarvios mais abastados, pela fama da sua água medicinal. Tempos que já lá vão, histórias que continuam vivas nas conversas de farmácia. As recordações são um grande património da freguesia. Como a cachola guisada que Isabel Barão e a neta Matilde vão comer daqui a pouco ao almoço.
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