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14 outubro 2019
Texto de Carlos Enes Texto de Carlos Enes Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

As pessoas e os animais

​​​​​​O posto abre a qualquer hora. O técnico de farmácia dorme com o telemóvel.

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Posto de medicamentos da Farmácia da Misericórdia de Santa Cruz das Flores - Ilha do Corvo

Os Açores são o céu no mar para golfinhos, cagarras, biólogos e artistas. O fotógrafo francês Guillaume Pazat morreu de amor pelo arquipélago à primeira visita. Férias atrás de férias, não sossegou até montar o seu próprio hotel ecológico na ilha Terceira, com quartos de pedra que brotam do chão e quartos de madeira a rebentar das árvores. Sonhou mil noites esse projecto com o amigo Hugo Couceiro.

Já em 2010 os dois tinham feito das suas na minúscula ilha do Corvo. Enquanto o engenheiro angrense planificava energias renováveis para o aquecimento da água das casas da vila, o fotógrafo francês desatou a retratar os corvinos lá dentro, com os electrodomésticos de cozinha, as colchas de cama e as roupas do dia-a-dia. No posto farmacêutico da rua Jogo da Bola encontramos o melhor relatador do mundo para essa estranha e arrebatadora reportagem.

– Estes são os metralhas e os filhos, do Café Metralhas. Aqui é o "Ti" Mendonça, o homem mais velho do Corvo, costuma estar ali sentadinho. Olha a Janeca! A Fatinha e o Tiago, que são mãe e filho. O Agostinho. O Júlio, que está no Canadá agora...

As pessoas ganham vida naquela voz fina de pronúncia cerrada, carregada de empatia profunda para com cada um dos retratados. De bata branca a reluzir ao sol do meio-dia, como a espuma das ondas que embalam a ilha, Pedro Domingos é o orgulhoso ajudante técnico do posto farmacêutico do Corvo. A barbicha, afinada a tocar saxofone nos ensaios da filarmónica para a festa da Nossa Senhora dos Milagres, emoldura um sorriso permanente.

– Nunca tive problemas aqui com ninguém. Um problema que fosse.

Só interrompe este abençoado estado de espírito para comentar, com uma boa gargalhada e de coração aberto, as anedotas, as estórias, as pequenas provocações e os dichotes dos seus clientes habituais, ou seja, todos os corvinos.

– Quem és tu assim tão simples? - tu dizes-me.
– E quem és tu afinal?
– Eu, a Nobreza da cidade.
– Eu, a aldeia de Portugal.
– Tenho lindas pedrarias, jóias lindas, muitas cores – diz o da cidade. 
– Eu tenho maior riqueza nas minhas tão lindas flores.

Odette Vieira pede desculpa por não se lembrar do resto dos versos. Não precisa deles para triunfar, com um relance trocista de origem demarcada, sobre a curiosidade dos visitantes continentais. Muito atrapalhados, eles gravam tudo o que ela diz nestes telefones que há agora. A mulher loira, de olhos azuis e muito conservada nos seus 74 anos, é a estrela da tarde.

Aprendeu a ladainha num livro de leituras. Passou-a para a boca de muitas levas de crianças no recreio da escola Mouzinho da Silveira, onde foi auxiliar educativa durante 46 anos. É uma mulher de rimas simples. Remata os assuntos à primeira, com a verdade desconcertante dos factos.

– Aqui nunca faltam medicamentos.


Se houver alguma necessidade imprevista, os medicamentos chegam de lancha, provenientes da ilha das Flores 

O posto farmacêutico é abastecido pelos aviões que chegam todos os dias de São Miguel e às segundas, quartas e sextas do Faial. A farmácia da Misericórdia das Flores também dá cobertura a qualquer necessidade inesperada, embarcando medicamentos na lancha que todos os dias liga as duas ilhas.. O horário de funcionamento do posto do Corvo é de segunda a sexta, das 9 às 12 e das 13 às 16 horas. Ao sábado, até ao meio-dia. Na realidade, é a qualquer hora do dia e da noite. O ajudante técnico de farmácia nunca abandona o telemóvel da mão.

– Sempre que é preciso, a gente telefona ao Pedro e o Pedro anda cá abaixo.

Ele só saiu da ilha para cumprir serviço militar, na Escola Prática de Cavalaria, em Santarém. Nunca mais voltou ao continente. Foi uma vez a São Miguel e outra com a filarmónica aos Estados Unidos. Fora isso, contam-se pelos dedos as suas escapadelas, de poucas horas, à vizinha ilha das Flores.

– Já não me dou um dia sem isto.

Pedro Domingos é um pequeno proprietário agrícola apaixonado pela terra e pelos animais. No posto farmacêutico, cuida das pessoas. Quando sobe ao Caldeirão, mata a fome das galinhas, das cabras, dos cães de guarda e de companhia. O gado bovino enche-lhe as medidas. Chama pelo nome próprio as suas 20 vacas e respectivo boi de cobrição.

– Rubia, Lira, Quimera, Tulipa! E o Obama, que tem de as namorar a todas.


Há cinco anos, a bióloga Barbara Ambros veio de Barcelona atrás das cagarras para a minúscula ilha do Corvo. Apaixonou-se e ficou

A ilha do Corvo dá pasto a 800 vacas no Inverno e 1.300 no Verão. População maior, só de cagarras, ariscas aves marinhas que fazem os ninhos em tocas. Calcula-se que três em cada quatro das cagarras que há no mundo nidificam nos Açores, atraindo ao arquipélago biólogos de todo o lado. Foi o caso da catalã Barbara Ambros, que vivia nas cercanias de Barcelona. Chegou ao Corvo atrás dos pássaros e logo conheceu o carteiro da ilha, que lhe levava à porta as cartas da família. A paixão ganhou asas e ela raízes à terra, vai para cinco anos. Trabalha no Centro de Interpretação de Aves Selvagens do Corvo. Só vai ao posto farmacêutico buscar desparasitantes para o cão Bobby e o gato Garbio. Mesmo assim, descreve com paixão o atendimento.

– O Pedro é uma pessoa fantástica, das mais queridas da ilha. Se for preciso, abre-te a farmácia ao domingo, sempre com aquele sorriso na cara.


No Corvo, já toda a gente reparou: este sorriso anda sempre com a bata branca​

A ilha tem um médico no activo e outro reformado, uma enfermeira, um veterinário e festejou há dias a chegada de um dentista. O Corvo conquista com alguma facilidade quadros ao continente. A escola dispõe de 20 professores para 43 alunos. As crianças não precisam de apanhar um barco para cumprir o ensino obrigatório. Há turmas de dois alunos.

– Para mim, foi uma experiência enriquecedora.


A professora Sofia Emílio não se esquece da experiência de ensinar Educação Visual e Tecnológica em turmas de dois alunos

A poveira Sofia Emílio chegou à Vila do Corvo no virar do milénio, para dar aulas de Educação Visual e Tecnológica. Ficou durante quatro anos mágicos. Casou com um corvino e conseguiu a efectivação à carreira docente. Quatro anos depois, a família foi viver para o continente. Regressa quase sempre nas férias. O posto farmacêutico é visita obrigatória, para aviar as saudades e os protectores solares das crianças.

– O Pedro é um amigo. E era a nossa salvação, socorria-nos muitas vezes.


Ovos caseiros, um terço, língua bem-humorada. Odette Vieira é uma corvina de gema

Odette Vieira entrou no posto farmacêutico com um balde de plástico cheio de ovos caseiros numa mão e um terço prateado na outra. Veio de fazer a visita à campa do marido. Pouco depois dela meter os papéis para a reforma, ele caiu-lhe morto em casa com “um derrame na cabeça”. O cemitério fica mesmo ao lado da pista dos aviões. Ela acredita que também as almas levantam voo. Sofre com resignação, porquanto a fé lhe dá a força para continuar.

– A gente nunca se deve abater àquilo que Deus nos dá.


«Graças a Deus, estou rija. Do posto, só preciso de coisas de nada», afirma Maria Idalcinda, 94 anos

Quem todos os dias faz “a volta da pista”, passeio de três quilómetros ao redor do aeródromo, é Maria Idalcinda. Os seus pés conhecem há 94 anos cada pedra de xisto das ruas da vila. No rosto, fino e magro, gravou todos os caminhos de uma vida de trabalho nas escarpas do Corvo, montanha de 17 quilómetros quadrados plantada no mar por um vulcão.

– Se a Ilha me criou, como pode ser pequena para mim?

Tal como o posto farmacêutico, o marido dela também era oriundo das Flores. Apareceu-lhe ainda salgado da água do mar e do suor da caça à baleia. Um dia, levantou-se tal tempestade no oceano e no coração de Fernando que o minúsculo barco a remos já não fez o caminho de volta. O caçador florentino tinha-se deixado apanhar pelo arpão trigueiro da corvina.

Nos primeiros tempos de matrimónio, Fernando emprestou o olho viciado em cetáceos a fazer de vigia, nos montes e outeiros, aos camaradas que continuaram no mar. Depois, agarrou-se como um touro à enxada e ao cajado. Arrancou à terra vacas e couves, porcos e feijões, bilhas de leite e queijos curados, galinhas poedeiras e nabos, repolhos e tudo quanto há. A viúva, coberta de preto, vai recordá-lo assim ainda por muitos anos.

– Graças a Deus, estou rija. Do posto, só preciso de coisas de nada.

De quinze em quinze dias, ela ou uma neta lá aparecem na rua Jogo da Bola a aviar uma caixa de vitaminas. E é tudo.

Por coincidência, ou talvez rigor científico, o ajudante técnico de farmácia coincide na expressão da saúde da nonagenária.

– Velha rija!

Nota-se que Pedro Domingos tem orgulho na saúde e na longevidade que as subidas aos plantios do Serrão Alto e as descidas ao pasto fértil da Lagoa do Caldeirão oferecem às pessoas e aos animais.

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