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30 junho 2023
Texto de Carina Machado Texto de Carina Machado Fotografia de Miguel Ribeiro Fernandes | Pedro Loureiro Fotografia de Miguel Ribeiro Fernandes | Pedro Loureiro

Avançar é preci(o)so

​​​Paulo Espiga, Conselho de Administração do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central.​

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A expressão “integração de cuidados” parece ter entrado no léxico comum a todos os stakeholders da Saúde. Que lugar antevê para as farmácias?
Julgo que têm um papel essencial a desempenhar. O mundo mudou, os pontos de contacto que as pessoas têm com qualquer serviço são múltiplos e, na Saúde, as farmácias são o setor onde temos profissionais disponíveis na maior parte do território, inclusive em áreas onde não há nenhum outro. Falo, por isso, de acesso, e de rapidez, se complementarmos com o facto de a rede estar organizada para oferecer disponibilidade 24 horas por dia. Agora, o que é essencial é que o contacto que as pessoas estabelecem na farmácia com o sistema de Saúde não comece e acabe no farmacêutico. É fundamental integrar estes profissionais, que têm as suas próprias competências, num processo de cuidados.

Ou seja?
Ou seja, é preciso prever níveis de intervenção e de referenciação, para que o farmacêutico, quando avalia uma pessoa, possa, se considerar mais indicado, referenciá-la para outro nível de cuidados de forma estruturada, que é o que hoje não acontece.

O tema não é novo, pelo que se pergunta: o que é que falta? É a partilha de dados? São sistemas de comunicação?
A questão dos dados é instrumental. Antes disso falta o processo. Isto é, pormo-nos de acordo quanto a como é que fazemos e a qual é o papel de cada um no processo de cuidar. E depois, sim, vamos aos instrumentos. É preciso aceitar que, embora o Serviço Nacional de Saúde continue a ser um pilar da sociedade portuguesa, hoje a prestação de cuidados tanto é feita pelo serviço público como pelo privado, seja ele social ou corporativo. As pessoas podem ser utentes no setor público ou clientes no privado, mas são sempre as mesmas, e não pertencem a ninguém. Nós, prestadores, o que te- mos é de preparar-nos para dar resposta qualquer que seja o acesso que façam ao sistema. Estando as farmácias próximas, é uma porta que tem de ser acautelada. Portanto, acho absolutamente essencial que nos consigamos sentar, gerar consensos e saber, cada um de nós, qual é o seu papel e como é que interagimos uns com os outros. Comunicação, no fundo.

Com a pandemia, vimos esses passos a serem dados, a serem, até, ultrapassados. Mas levantada a tempestade, parece ter-se feito tábua rasa de muitas das experiências vividas. Como é que isto se explica?
Enfim… A necessidade sempre nos fez mover mais depressa e quando não existem alternativas, usamos o que temos à mão. Eu gostava de ter uma nota positiva, mas não penso que vá ser assim tão fácil. Depende de cada um de nós, nas nossas instituições, e de, se dentro do quadro legal que todos temos, há vontade. Se sim, vamos lá sentar-nos! Às vezes temos de começar devagar, com quem nos rodeia e tem interesses comuns, para conseguirmos chegar mais longe. No caso das farmácias, isso será com os seus centros de saúde, os hospitais de maior proximidade. Temos é de começar. Caso contrário, vamos estar sempre a elaborar grandes teorias de gestão, administração, clínicas… e, no fim, ficamo-nos por isso. O que as pessoas precisam é de respostas. O tempo em que aceitavam tudo o que lhes era dado, mesmo na Saúde, terminou. Hoje, a principal porta de entrada no sistema de Saúde é o Dr. Google. Temos de nos capacitar disto. Não é fácil, toda a nossa estruturação em termos teóricos, académicos e mentais foi outra. Mas se não formos nós, as próprias pessoas vão obrigar-nos a não voltar para trás. Da mesma forma como adquirem produtos, pela Internet, no outro lado do mundo e, em 24 horas, os têm em casa, também exigem que nós sejamos muito mais ágeis e não as façamos perder tempo. O tempo é, provavelmente, o bem mais escasso que existe.

E em saúde, é precioso! Pelo que, se há que começar numa escala menor, então por onde?
Julgo que casos como aquele, bastante volumoso, ao nível da distribuição de medicamentos hospitalares em Farmácia Comunitária, são um bom exemplo. Mas podemos avançar com a revisão terapêutica, há consenso entre ordens profissionais acerca disso. Podemos usar a rede de farmácias para os rastreios de Saúde Pública. Podemos - muito importante! - trabalhar nas áreas relacionadas com as doenças crónicas. Temos é de ter sempre as respostas às mesmas questões como ponto de partida: a quem é que o farmacêutico reporta? A quem referencia? Com quem comunica? O sistema conta com uma rede com milhares de pontos de contacto em todo o país, pelo que temos mesmo de promover esta integração e estruturação.

Dizia há pouco que a necessidade é catalisadora e a realidade mostra-nos, de facto, que, no terreno, os profissionais ultrapassam barreiras e entendem-se em benefício dos doentes. Porém, quando se pretende dar a essas experiências um carácter de maior formalismo, as dinâmicas esmorecem, dando lugar a medos e receios que o terreno já atirou para o plano teórico. Ainda há preconceito institucional? Ou é caso de pouca vontade política? 
O medo, às vezes, é positivo: mantém-nos alerta. Mas, neste caso, penso que tem razão. Se, por um lado, ainda bem que há preocupações legítimas com a segurança dos doentes, por outro, isso não deve congelar as pessoas nas suas decisões. A maior dificuldade da mudança é, de facto, cada grupo pro- fissional ter o seu âmbito de atuação perfeitamente definido, e as ideias mais corporativas impedem, por vezes, que se ande mais depressa. Mas faz parte das regras, e se tivermos mesmo vontade de fazer algo com valor intrínseco, acabamos por consegui-lo. Se isto é da política? Não diria. A política somos todos nós, somos nós que a fazemos, e se em momentos de crise ela pode ser perfeitamente diretiva, de um modo geral, política é discussão, são as melhores alternativas com o conhecimento que se tem no momento. Vivendo nós, felizmente, num país democrático, as decisões políticas devem espelhar aquilo que são os entendimentos da maioria.

Paradoxalmente, ou não, parece ser hoje mais consensual e consequente do que nunca, entre os diferentes parceiros da Saúde, a ideia de o doente ser o centro do sistema. Concorda?
Concordo. Se andarmos 30 anos para trás, vemos que tínhamos uma nova geração de hospitais públicos a aparecer, e pouco mais. Os centros de saúde estavam atomizados, tínhamos o setor privado muito organizado em pequenas unidades... A mudança foi radical: os centros de saúde passaram a trabalhar em equipas multidisciplinares, nas USF; os hospitais organizaram-se em centros de referência e, de há pouco tempo, em centros de responsabilidade integrada; temos hoje novas competências, trazidas por novos atores ao sistema; o setor privado cresceu de forma muito exponencial… A mudança evidenciou que há lugar para todos neste mercado e mostrou que se as partes não se juntarem, ou pelo menos colaborarem, as coisas não correrão tão bem. Aliás, são os próprios doentes a exigi-lo. Veja este exemplo: hoje ninguém aceita que lhe digam que só pode ir a este ou àquele hospital. Em 2017 a legislação teve de mudar para a livre escolha no SNS por pressão dos utentes. O sistema pode parecer imóvel, mas ele move-se porque os doentes o impõem. Se há exigência da sociedade, as organizações, com maior ou menor velocidade, acabam por se adaptar. Mais: a digitalização abre-nos muitas possibilidades e a pandemia, das poucas coisas positivas que trouxe, foi expor que há processos que funcionam. Alguns voltaram para trás, é certo, mas para os cidadãos que beneficiaram deles isso não faz sentido, e a pressão que exercem fará com que sejam retomados. Temos de nos capacitar no setor público de que se os utentes do SNS, por se sentirem desvalorizados, começarem a desvalorizá-lo, tornamo-nos irrelevantes. Nessa altura, a sociedade pode escolher a qualquer momento que o dinheiro público, em vez de ser dado aos hospitais públicos, deverá ser entregue a outras entidades.


Para Paulo Espiga, face a um futuro desafiante na Saúde, «vamos mesmo ter de conversar uns com os outros e de partilhar a informação»​​​

Disse, no congresso, que Portugal é dos países mais digitalizados na Saúde, mas os dados não são transformados em informação.
Sabe? Considero que estamos num momento de transição absoluta entre formas de produção. Na Saúde, em concreto, isso é absolutamente assim. Os avanços feitos nos últimos três anos em matéria de computação e inteligência artificial colocam os bancos de dados numa posição de absoluta preciosidade. Na minha atividade clínica, eu antes podia achar que fazia um bom diagnóstico, mas hoje o diagnóstico pode ser feito de uma forma absolutamente rigorosa e muito mais atempada através da partilha e computação de dados. Em Portugal, ao contrário do que muitas vezes pensamos, temos um grau de digitalização muitíssimo elevado. No serviço público, a grande maioria dos hospitais utiliza o mesmo sistema, pelo que somos detentores de informação de saúde totalmente consolidada, já com cerca de 15 anos. Além disso, temos uma enorme vantagem que não estamos a aproveitar: somos dez milhões, numa população relativamente homogénea, o que em termos de Epidemiologia é bastante. Não obstante, a recolha de dados está muito compartimentada, pelo que pouco é feito ainda para os transformar em informação útil à jornada do paciente. O desafio, agora, é exatamente esse: agarrar nos dados, transformá-los em informação e, assim, gerar valor. Penso que já fizemos 80% do caminho: temos a infraestrutura, que tem de melhorar, ser mais articulada, mas também temos os dados e temos pessoas hipercompetentes em todas as áreas. É juntar as coisas e não ter medo. O futuro é muito desafiador. Na Saúde, vamos mesmo ter de conversar uns com os outros, de partilhar a informação. Por isso, sim: acredito que estamos a caminhar para um sistema de Saúde muito mais integrado e muito mais de acordo com aquilo que os cidadãos necessitam e exigem.

Um futuro que tem necessariamente de ser próximo?
A evolução social obriga-nos a isso, pelo que não vejo que as coisas demorem muito mais tempo. Somos um país evoluído, mas com limitação de recursos. Se não dermos estes passos, todas as conquistas de uma Saúde democratizada que conseguimos para a nossa população podem estar em risco.