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14 outubro 2019
Texto de Carlos Enes, Maria Jorge Costa e Sónia Balasteiro Texto de Carlos Enes, Maria Jorge Costa e Sónia Balasteiro Fotografia de Céu Guarda e Mário Pereira Fotografia de Céu Guarda e Mário Pereira

As farmácias do mundo novo

​​​​​​Farmácias devem recolher e usar dados em saúde na sua prática diária.

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Que papel vão ter as farmácias nos sistemas de saúde dos países mais desenvolvidos?

A resposta à pergunta implica usar o cérebro, porque vamos falar de ciência. Mas também levantar a cabeça e olhar em volta, para o ecossistema de saúde. Se repararmos bem, no centro impõe-se o doente. Ou melhor, no centro estão os interesses do doente, aquilo que ele mais valoriza. Provavelmente, a sobrevivência e a qualidade de vida. O que isto significa em concreto, é preciso perguntar a cada grupo de doentes por métodos científicos.

«O objectivo de todos os actores do sistema de saúde tem de ser maximizar o valor para os utentes», introduz Thomas Kelley, um craque no assunto. É conselheiro do governo do País de Gales em Medicina Baseada na Evidência. Em 2013, foi um dos fundadores do Consórcio Internacional para a Medição de Resultados em Saúde (ICHOM), influente centro de estudos sem fins lucrativos. O ICHOM tem sede em Boston, mas agrega peritos de todo o mundo civilizado. Trabalham em rede. Estão a mudar a cultura de governos e profissionais de saúde dos países mais desenvolvidos. Nos Estados Unidos, 42% dos médicos, executivos e gestores de carteiras de seguros estão convencidos de que os reembolsos com base em valor são o futuro do sistema. O futuro próximo – e nos dias de hoje tudo acontece muito rápido.

Um e-mail liga-nos ao conhecimento em segundos, os modernos aviões em poucas horas. Estamos na Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa. Thomas Kelley é a estrela do primeiro workshop do Instituto de Saúde Baseada na Evidência (ISBE), realizado em parceria com a Associação Nacional das Farmácias (ANF).

O orador revisita conceitos simples com detalhe, apenas para os preparar para viajarem confortavelmente rumo a um novo paradigma. «Temos de nos focar no doente», insiste vezes sem conta. Os sistemas de saúde estão pressionados a «procurar os resultados que importam às pessoas». A partir daqui, o conceito já fia mais fino. Os resultados que importam ao doente não coincidem necessariamente com os resultados que importam aos seus cuidadores. Pelo menos, enquanto os prestadores de cuidados de saúde pensarem e agirem de forma “tradicional”, em que no centro, afinal, está o seu próprio desempenho.

Por exemplo, os doentes cardíacos a quem tenha sido aplicado um stent. Na formulação clássica, entende-se por “bom resultado” a aplicação bem-sucedida desse dispositivo e a prescrição de medicação adequada. Alta ao doente, problema resolvido.

No novo mundo da saúde baseada na evidência, o hospital não dá o seu trabalho por concluído nesse momento. Pelo contrário. É preciso acompanhar o doente mais algum tempo e recolher informação segura sobre os reais resultados da cirurgia. 

Thomas Kelley lança algumas perguntas para desenhar um estudo epidemiológico baseado na evidência para determinar o valor em saúde da aplicação de stents cardíacos num determinado grupo de doentes. «Quantas pessoas regressaram ao trabalho após a aplicação do stent? Quantas são capazes de realizar tarefas do dia-a-dia que lhes importam? Tiveram alguma infecção depois do procedimento?», enuncia.

A produção de conhecimento implica a segmentação dos doentes. «Os resultados que interessam a alguém com cancro da mama – quão boa é a aparência depois de uma reconstrução – são diferentes se tiver cancro da próstata, no qual quererá saber se ficou com incontinência», expõe Kelley. Mas se o critério for as infecções pós-cirúrgicas, então já poderá interessar a todos os doentes com cancro. «Há sempre algo que interessa a toda a população dos subgrupos», refere.

A recolha sistemática e a análise criteriosa destes dados são actos que, em si próprios, acrescentam valor ao sistema de saúde. Pela razão simples de que tornarão evidentes as mudanças que as equipas de saúde e os gestores do sistema deverão adoptar para melhorar a saúde realmente percepcionada pelos doentes, assim como para reduzir custos e actos clínicos supérfluos. «Os objectivos são melhor resultado em saúde e menos despesa», recorda Kelley.


«Foco no doente e no controlo de custos», apela o perito

O “foco no doente” responde ao lado de dentro da panela de pressão em que os sistemas de saúde vivem mergulhados. Vistos de fora, a partir do interesse dos contribuintes, dos mutualistas ou das seguradoras, os sistemas de saúde também estão pressionados a garantir «resultados ao menor custo possível». Com a mesma obsessão da atenção aos doentes, Thomas Kelley acolhe a necessidade de todos os agentes «manterem o foco nos custos, sob pena de os sistemas de saúde se tornarem insustentáveis».

Considerando a panela de pressão, os sistemas de saúde têm semelhanças com o mercado imobiliário. «Se você for comprar uma casa, vai querer um determinado número de quartos, certas características da sala, a melhor localização. Quer o melhor, gastando menos dinheiro», simplifica Thomas Kelley.

A saúde dos doentes cardíacos que receberam um stent no hospital depende do sucesso do internamento e do acto cirúrgico, mas também da continuidade de cuidados ao longo do tempo. A equipa de saúde que assiste cada doente é composta por múltiplos profissionais. «Os cuidados de saúde não são providos apenas por médicos e enfermeiros, mas por um grupo crescente e intrincado de profissionais de saúde, espalhado por diferentes partes da cidade, diferentes edifícios. Às vezes, em diferentes regiões», descreve Thomas Kelley.

Esta equipa deve trabalhar de forma articulada. Desde logo, isso implica a recolha e a troca de informação relevante sobre o estado de saúde dos doentes. Em função desses dados, devidamente analisados, as intervenções de cada agente da equipa de saúde poderão ser planificadas de forma concertada. E de acordo com as melhores práticas clínicas, assim como das mais eficientes do ponto de vista dos custos. Thomas Kelley não discorre sobre farmácias sem relembrar que «é decisivo que os cuidados de saúde funcionem como um sistema, não de forma individual». 

A recolha de dados úteis à análise científica é a primeira grande missão das farmácias. «O farmacêutico pode contribuir para melhorar a qualidade dos dados e os resultados», apela Thomas Kelley. A rede de saúde que atende mais pessoas é indispensável para esses objectivos.


O fomento da adesão à terapêutica é um serviço farmacêutico com valor claro para o utente e para os financiadores de cuidados de saúde



Quais as intervenções farmacêuticas úteis e necessárias num sistema de saúde assente em valor? Aquelas que resolverem os problemas dos doentes e produzirem resultados valorizados por eles. Thomas Kelley, com base na evidência científica, avança algumas respostas. A primeira, prende-se com o valor dos serviços farmacêuticos de fomento à adesão terapêutica. «Sabemos que há problemas enormes quando perguntamos se as pessoas tomam, de facto, os medicamentos, no momento certo, na dose certa», lamenta o orador. O farmacêutico pode contribuir para incrementar o compromisso dos doentes com os programas terapêuticos. E, lá está, isso vai melhorar a saúde dos doentes e combater custos do sistema.

Os farmacêuticos devem identificar as respectivas intervenções profissionais por forma a ajudarem o sistema a orientar-se na direcção do valor. «Há realmente uma oportunidade aqui», sublinha.

As farmácias devem recolher e também usar os dados na prática diária. Na sua cultura deverá estar a avaliação de resultados e a implementação dos procedimentos evidentes, em articulação com os investigadores e outros agentes do sistema. «A comunidade hospitalar, a comunidade farmacêutica, o médico do hospital, os enfermeiros, os fisioterapeutas, todos vão estar numa equipa que conversará e verá como estes resultados acontecem. Se tivermos o objectivo de fazer isto num ano, é absolutamente
concretizável», acredita Kelley.
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