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10 fevereiro 2020
Texto de Rita Leça Texto de Rita Leça Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

«Agora, sinto um nervosão»

​​​​​​​​​​Carlos do Carmo numa conversa intimista.

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Sempre foi considerado um homem elegante.  Que cuidados tem? 
Acha? (risos) Não faço nada de particular. Tudo se centra na cabeça, no coração e na voz. Gosto tanto de cantar, e de cantar para as pessoas, que me transformo. Para mim, cada concerto é uma viagem.

 


Vai ao sabor dessa viagem? 
Bom, depende bastante de quem ouve. O público é que tem a condução. O seu comportamento e forma de reagir são vitais. 

Ainda sente aquele nervosinho antes de subir ao palco? 
Nervosinho? Não, já não.  Agora sinto um nervosão! 

É algo a que uma pessoa nunca se habitua? 
Jamais! Uma vez, convidei o Chico Buarque para vir a Portugal. Fomos cantar ao Monumental. Ele estava tão nervoso que a Marieta, a sua primeira mulher, e a minha mulher tiveram, as duas, de o empurrar para o palco. Empurrar! A verdade é que os públicos nunca são os mesmos. Por exemplo, antes de subir a um palco que não seja na Grande Lisboa ou no Grande Porto penso sempre: «Vou cantar numa terra que não é do fado. Eles têm outras músicas.» E faço cerimónia. Talvez isso me ligue às pessoas. Percebem que estou a fazer cerimónia e isso liga-nos.


O cantor numa sessão fotográfica em 2017

Sente-se bem recebido? 
Sempre fui tratado com respeito, como um ser humano, um artista e não como um qualquer objecto de consumo. Isso apraz-me bastante. Por estar há tantos anos a cantar, tive a oportunidade de ver a mudança dos tempos. No princípio era difícil, muitas vezes em condições precárias. Cantei, uma vez, numa esplanada no Algarve. Noutra, em cima de um tractor, no Alentejo, onde o barulho do gerador era mais alto do que a minha voz. Quando passamos por estas coisas e depois chegamos a um palco, dizemos: “Ah, estou no meu sítio! Mas foi bom ter estado nos outros”.

Disse, há tempos, que estar no palco é um jogo de sedução. 
Completamente. 

 



Também se alimenta dessa experiência? Estar em palco dá-lhe vida? 
Como todos os artistas, sou narcisista. Gosto muito de estar em palco, mas também aprendi. E quem me ensinou foi o Frank Sinatra. Tenho muitos livros sobre ele e, num dado momento, ele disse que estar no palco é como estar na sala de estar a receber as visitas. E, se pensar bem, aquele silêncio, aquela densidade, tem muito a ver com essa aproximação.

Despediu-se dos palcos com dois grandes concertos, no Porto e em Lisboa, e logo a seguir foi gravar um álbum. É obra! 
Este disco tem uma simbologia. Hoje, o disco é um objecto obsoleto, já ninguém compra. Da mesma forma que não dou concertos, mas posso fazer uma participação aqui ou acolá, posso voltar ao que comecei: aos singles. Acontece uma coisa bonita, gravamos um single.


O músico gosta de se sentar à secretária todos os dias  para escrever e praticar os seus fados de eleição 

Mas ouvi dizer que não gosta do trabalho no estúdio…
Gravar um disco ao vivo é algo que amo. Porque não deixo o técnico tocar em nada. Os erros são para ficar, porque quem toca e canta são pessoas, seres humanos. No estúdio, não. Tem de se corrigir tudo. É uma chatice. Ao fim de uma semana já não posso ouvir o disco.

Que surpresas nos reserva o seu novo disco?  
Tenho coisas muito bonitas, no sentido da elevação, de poetas como Hélia Correia, Herberto Helder, Sophia de Mello Breyner, Vasco Graça Moura, entre outros. O Jorge Palma fez-me uma canção, o Pedro Abrunhosa escreveu, pela primeira vez, um fado! 

Acha que, hoje, o fado está em boas mãos? 
Temos vozes maravilhosas:  o Ricardo Ribeiro, o Camané, o Pedro Moutinho. Curiosamente, houve um tempo em que, no estrangeiro, achavam estranho um homem cantar fado. Na primeira vez que cantei no Olympia, em Paris, as pessoas ficaram estupefactas porque achavam que quem cantava fado era só a Amália!


O cantor expõe, orgulhoso, um tapete  feito em homenagem ao fado

E no caso das fadistas mulheres? 
Há vozes muito bonitas, que cantam muito bem o fado, mas agora deu-lhes para fazer mainstream. Viraram cantoras pop e é tudo com bateria. Para quê? Se me disser percussão, que é uma coisa agradável e cobre certas sonoridades, entendo. Mas bateria? Pode chamar-me "bota de elástico", mas confesso que não entendo.

Lançou-se no fado com “Loucura", numa versão nada convencional, com guitarra, baixo e coro feminino. 
Isso foi uma loucura. O Mário Simões, na altura, tinha uma banda com muita popularidade. Eu costumava c​antar com ele, canções francesas, italianas, americanas. Um dia, convidou-me para cantar um fado no seu disco. Disse-me: “Era giro! São quatro faixas. Já tenho três. Falta-me uma e gostava que fosse a tua”. Então, cantei com bateria – mas vassouras, nada mais pesado, guitarra eléctrica, baixo, piano e duas senhoras que faziam vozes. Pensei que seria massacrado. Qual não foi o meu espanto quando começou a tocar na rádio. E nunca mais parei.

Foi inovador. 
Não sinto isso. Penso que foi uma aventura que correu bem. 


A biblioteca onde Carlos do Carmo guarda as memórias favoritas

E qual será a sua próxima aventura?  
Deixei os concertos, mas não sou homem de passar o dia de chinelos a ver TV. Gostava de percorrer o país e conversar com as pessoas sobre o fado. Elas fazem perguntas e respondo o que sei. O que não sei fica em aberto. Para ultrapassarmos aquela situação, para mim muito dura, que acontece quando pergunto a alguém se gosta de fado e a pessoa responde: «Gosto muito!». Depois pergunto: «De que fados gosta especialmente? Da Mouraria, por exemplo?». E a pessoa diz logo: «Ah, disso não percebo nada!». Ora, isso não tem sentido. Além do mais, também gostava de ajudar alguém jovem a construir uma carreira, desde o zero. São estes os meus planos. Já não é mau. (risos)

Qual é o segredo para chegar com tanta energia aos 80 anos? 
Não esperava chegar aos 80 anos. Tive uma vida muito desgastante, cantei no mundo inteiro e isso cansa, deixa peso. Esperava viver a Primavera da vida, o Verão, o Outono, mas confesso que não esperava chegar ao Inverno. Foi uma benesse de Deus e estou muito grato por isso.
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