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2 agosto 2019
Texto de Paulo Martins e Marta Silva Texto de Paulo Martins e Marta Silva

Abracaldabra

​​​​​​​Histórias incríveis de bruxas, droguistas e curandeiros.

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Por três alqueires de santeio, se de boa qualidade, oferecia serviço (quase) completo: barba, corte de cabelo e arranque de dentes na loja; curativos em casa. Desinfectantes e medicamentos também se arranjavam, mas eram pagos em dinheiro, não em cereais. Algures na Beira Baixa, um barbeiro, travestido de dentista-médico-farmacêutico satisfazia boa parte das necessidades comunitárias, a avaliar pelo editale (ler nestas páginas) reproduzido na edição do Boletim do Grémio Nacional das Farmácias de Agosto-Setembro de 1942.



O exercício ilegal de Medicina ou Farmácia levou anos a extirpar, para desespero das entidades incumbidas de o combater. Um artigo publicado por um farmacêutico no órgão oficial do Grémio, em Fevereiro de 1960, incluía entre os «nossos inimigos e causadores da nossa ruína» drogarias, mercearias onde se encontrava linhaça, mostarda ou álcool puro, e, até, lojas de materiais de construção, que vendiam soluto de mercurocromo, tintura de iodo, comprimidos de cibazol ou borato de sódio. Muitos produtos farmacêuticos passavam por outros circuitos, mas os profissionais do sector, sublinhava o sócio n.º 477, não podiam vender «cal ou cimento, pregos ou parafusos, sacholas ou serrotes, martelos ou formões, batatas ou bacalhau, arroz ou açúcar». 

Também no Boletim, um misterioso “Z” queixava-se, em finais de 1949, das empresas «que exercem, por atacado, todas as actividades ligadas ao comércio de medicamentos». A certos comerciantes, escrevia, só interessava a «ganhança», sem olharem a meios. «Açambarcadores Topa-a-tudo [sic], protegidos pela “doce brandura dos nossos costumes”».


 
A venda de especialidades farmacêuticas em drogarias era uma prática generalizada. Num ofício enviado em Outubro de 1941 ao Sindicato Nacional dos Caixeiros de Lisboa, disponível no arquivo da ANF, a Direcção, admitia que o Grémio fora criado, no ano anterior, para travar o «caminho de ilegalidade ocupado pelos droguistas» e «restituir à Farmácia o que a ela pertence». Nem sempre a aplicação de multas, o meio ao alcance da entidade, se revelava dissuasora. Entre tantos outros, remeteu para tribunal, em 1941, o caso da venda de uma pomada e de 30 gramas de sulfato de sódio numa drogaria de Lisboa, cujo dono pagou 476$05 para escapar ao julgamento. Um comerciante de Coimbra assumiu preto no branco, em 1969, ter aviado dois comprimidos de salicycafeína, ainda por cima a um menor. 

Os fiscais chegavam a arriscar o pêlo. Ilídio Coelho, funcionário do Grémio durante quase 23 anos, contou no Boletim a sua aventura alentejana, quando em 1953 acompanhou dois deles, para servir de testemunha. Perto da Vidigueira, teve de enfrentar um sujeito de navalha em punho, próximo de uma taberna suspeita de vender «manipulações farmacêuticas». Numa drogaria de Alter do Chão, só a GNR calou os apupos do povo, dirigidos à equipa. «Não se concluiu a diligência, porquanto ao se ter apercebido do objectivo da fiscalização o seu proprietário teve uma crise cardíaca, com necessidade de intervenção médica».

Por mais activa que fosse, a acção do organismo corporativo não aplacava a fúria dos sócios. «Pode o Grémio actuar eficazmente?», questionava um artigo publicado em 1950 no Boletim, dando de imediato a resposta: «Não pode! São insuficientes os seus recursos financeiros para acarretar com todas as despesas de manter em constante vigilância». Alternativa? A denúncia: «Convém que todos os agremiados que possam indicar os “vendilhões amadores” o façam».

Na fileira dos ditos vendilhões, como já vimos, alinhavam barbeiros – em 1956, foi descoberto outro, autuado pela venda de ampolas Coramina e comprimidos Saridon num “Posto de Socorros” montado em Pedro de Moel – mas também curandeiros, bruxos, «benzilhonas» e «mulheres de virtude», que praticavam supostos actos médicos e prescreviam medicamentos, explorando «a superstição calamitosa e o temor incompreensível [que] mantêm os espíritos mergulhados na crassa ignorância das coisas esclarecidas».



Esta descrição poderia muito bem ter sido feita pela farmacêutica de Coruche que, em carta divulgada em Setembro de 1944, denunciava uma curandeira com vasta carteira de clientes, embora a localidade onde vivia dispusesse de seis médicos. Tão famosa se tornou que já tinha um ajudante. «Apesar de analfabeta, conhece, não sei por que artes, o nome de uma dúzia de especialidades, às quais restringe o seu receituário. Fora disto, apenas preconiza “lambedor para a enterite”, ou uns papelinhos de quinina doce, para uma criança de x anos ou x meses; cânfora, álcool, incenso e algumas ervas».

Por vender sem receita médica medicamentos que ela aconselhava, como xarope de maçã, o farmacêutico coruchense era acusado de alimentar o negócio da charlatã. «Sei até que já alguém, malevolamente, insinuou — e não se tratava de boçais! — que a minha farmácia, era a farmácia da “bruxa”». Insinuação «mesquinha», essa. Mas lá que o irritava...

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O barbeiro que fazia curativos

Enviado por um farmacêutico de Braga, o editale do barbeiro de «certa aldeia da Beira Baixa», publicado no n.º 21-22, de Agosto/Setembro de 1942 do Boletim do Grémio Nacional das Farmácias, é uma delícia. Pelas práticas que revela e pelos tratos de polé a que submete a língua portuguesa. Ora leia estes extractos.



EDITALE 

Novo rigolamento nos Fregueses justos ó não afraguezados na fraguesia do Barbeiro infra abaixo açinado:

Art. 1º - Este Rigolamento é para invogorar dentro de um ano cujo ele é a começar de hoje indiante podendo conseguir mais tempo se não for arrevogado por outro de terminar por fim o praso. 
Art. 2º - Todos os fragueses para barba, cortes de cabelo e dentes na loja e curativos em minha casa três alqueires de santeio que seja bom. 
Art. 3º - Querendo só para barbas e cortes de cabelo, um alqueire de santeio que seja bom. 
Art. 4º - Todos os fraguezes particulares de barba feita uma vez na semana e curativos e cortes de cabelo quatro alqueires de santeio que seja bom. 
Art. 5º - Todos os fraguezes que não estiverem ou não estejam justes tiragem de Dentes cada um 2.500 reis, em minha casa 5.000. 
Art. 6º - Todos os fraguezes que estiverem ou não estejam juste de cada Visita em minha casa 2.500 rs. e fora de minha casa da mesma dita fraguesia 5.000 rs., isto é são visitas de dia e visita de noite são a dobrar. 
Art. 7º - Todos os fraguezes mesmo que estejam justes, todos os curativos serão pagos isto é pagarão mais o excesso dos Dezinfectantes e de todos os mais pertencentes ao curativo que são os medicamentos. 
Art. 8º - Todos os fraguezes que não estejam justes corte de cabelo e barba 1.000 rs. e corte de cabelo ós a tesoura 75º. 
Art. 9º - Barba dos defuntos falecidos 1.000 rs. dia e de noite 1.500 reis.
Art. 10º - Corte de cabelo nos filhos serão pagos fora do contrato. 
Art. 11º - Este contrato só terminado o seu ano e ó depois serve ao Fraguez conforme vai e para quem quiser e quem precisar dos meus serviços eu não obrigo Ninguém á força, agora peço a todos os Fraguezes que não queiram ou não possam seguir de me dizerem, para ser abatidos na Relação antiga para não os paçar pra Relação nova termino fim. D.A.M.
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