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23 maio 2018
Texto de Paulo Martins Texto de Paulo Martins Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

O Grémio bateu o pé à censura

​​​​​​Exposição de farmacêuticos a Marcello Caetano era para cortar, mas saiu mesmo no Boletim Informativo.

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Manifestações de sedução pelo estrangeiro, ainda que tímidas? Corta! Queixas ao poder político? Corta! Adjectivos ousados, a cheirar a denúncias? Corta! Angústias meio reprimidas? Corta! No tempo da ditadura, o aparelho de censura, totalitário nos propósitos e tentacular na extensão, nem os organismos corporativos poupava. Como era imperioso manter intacta a imagem de um país onde o respeitinho era bonito e a obediência apreciada, o ’lápis azul’ também irrompeu no Boletim  Informativo do Grémio Nacional das Farmácias.

Tratou-se de operações discretas, certamente na suposição de que os dirigentes do Grémio, representativo dos pequenos empresários do sector, jamais ousariam pular a cerca. O regime confiava que, estando enquadrados no sistema político, matariam veleidades à nascença. No entanto, nem sempre aceitaram comer e calar. E, valha a verdade, quando protestaram até foram atendidos. 

A frase “Visado pela Censura”, que os jornais eram obrigados a inscrever nas primeiras páginas, não surge nos órgãos oficiais do Grémio, o que torna mais complexa a análise da actividade censória. Terá sido pouca expressiva, a avaliar pela documentação conservada nos arquivos da Associação Nacional das Farmácias. Mas quantidade não é qualidade.

Até Junho de 1970, a fiscalização do Boletim Informativo era exercida pelos Serviços de Acção Social do Ministério das Corporações e Previdência Social. Tanto quanto se sabe, só operaram um corte. Incidiu sobre um pequeno texto destinado ao n.º 2, de Fevereiro desse ano, no qual os farmacêuticos eram aconselhados a não concederem descontos aos beneficiários da Caixa de Previdência da CUF, que apesar de já estar integrada na federação das caixas mantinha em funcionamento a sua farmácia privativa.

Mal a Comissão de Lisboa dos Serviços de Censura entrou em acção, a coisa passou a piar mais fino. Nem uma linha foi autorizada da exposição endereçada a Marcello Caetano por proprietários de farmácias da Amadora, Queluz e Benfica, cuja publicação estava prevista para o n.º 7 do boletim, de Agosto de 1970. Os censores queriam assegurar-se de que ninguém tomaria conhecimento da «agonizante situação económica» das farmácias, que «deslizam para o abismo em plano inclinado». Terão considerado perigoso estimular a reivindicação de regresso à margem de lucro de 30%, em vigor até 1941, ano em que baixou para 20%. Ou dar corda às queixas acerca dos encargos com a Previdência, do aumento do valor das contribuições para o Estado e os municípios, dos descontos no preço dos medicamentos concedidos aos beneficiários da Previdência, a sempiterna ‘pedra no sapato’. Finalmente, riscaram o pedido de punição de farmácias com alvará de armazenistas ou ligadas a laboratórios que praticavam concorrência desleal.


Carta do Grémio exprimiu surpresa e a decisão foi revista 

Confrontada com cruzes a suprimir por inteiro três páginas de texto, a Direcção do Grémio reclamou junto do director-geral de Informação, Geraldes Cardoso. Em carta datada de 25 de Agosto de 1970, manifestou surpresa perante tão «incompreensível» amputação. É provável que tenha sido de novo apanhada de surpresa com a resposta, que chegou a 7 de Setembro. Não é que foi autorizada a publicação?

​​Ainda não fora instituído o Exame Prévio, nome mais pomposo para designar o mesmo exercício inquisitório, mas é legítimo admitir que os ventos da Primavera Marcelista estariam a soprar nas salas onde as provas tipográficas eram passadas a pente fino. A História confirma que, na primeira fase do consulado de Marcello Caetano, a pressão se atenuou. Não custa imaginar que o poder estivesse empenhado em dar de si próprio uma imagem mais dialogante, através de uma ou outra cedência. Ou de uma ou outra aparência de cedência. 

Os Serviços de Censura, que tinham sido mais papistas do que o Papa, meteram a viola no saco. No n.º 8 do boletim, lá saiu a exposição ao presidente do Conselho e um texto de apoio à iniciativa, subscrito por cinco proprietários de farmácias de Faro, que inicialmente também fora cortado de fio a pavio. Na edição seguinte, já os censores não se atreveram a remover outro do mesmo teor, da autoria de farmacêuticos de Matosinhos, Pombal, Torres Novas e Setúbal.

Por essa altura, o Grémio concluíra negociações com a Federação das Caixas de Previdência, mas a redução de 10% para 7% do desconto aos associados desta entidade só seria consagrada no acordo assinado em Dezembro de 1970. Aliviava-se o garrote sobre as farmácias, mas não o suficiente para travar queixas dos agremiados, que o boletim acolhia e a Censura vigiava.

Uma ’entrevista relâmpago’, no n.º 10, perdeu várias partes, hoje imperceptíveis porque o papel depositado em arquivo se deteriorou. O ‘lápis azul’ – literalmente – invadiu textos do n.º 13, de Fevereiro de 1971. De uma entrevista a José da Cruz Pires, farmacêutico de Torre de Dona Chama, em Mirandela, foi eliminada uma crítica ao próprio Grémio: «A justiça social, que tanto apregoa, não passa de um mito».


Censura não permitiu sugestão de farmacêutico para que fosse dado «aperto»​ ao director de um jornal

A menos que, à cautela, os censores fizessem desaparecer qualquer frase que incluísse a expressão «justiça social», não se percebe a razão do corte. É que o entrevistado não foi nada meigo em acusações directas, que os serviços não apagaram. Cruz Pires afirmou que o Grémio não tinha noção da magnitude da crise económica das farmácias. Pior: fazia «démarches mais ou menos inúteis» e, incapaz de apresentar argumentos válidos, «em toda a parte levou com a porta na cara». A Direcção não se ficou: venha daí «o seu “abre-te Sésamo” que lhe abriria todas as portas, porque bem gostaríamos de aprender consigo um processo eficaz para sermos atendidos », escreveu.

A mesma edição reproduz uma carta enviada ao jornal “A Capital”, nunca publicada, que por entre elogios a Marcello Caetano descreve os problemas do sector. O autor, Tomé José Gonçalves, proprietário de uma farmácia de Braga, pede ao Grémio que providencie a publicação. “Pede” é força de expressão. Na realidade, sugere que «dê um aperto» ao director. Isso é que a Censura não podia permitir. Amigo do Presidente da República Américo Thomaz, o então director do vespertino, Maurício de Oliveira, tinha também acesso privilegiado a Caetano. Sabe-se que, sobre a forma como geria a equipa de jornalistas, a certa altura lhe garantiu, em carta pessoal: «Obedece-me cegamente, como um só homem, e trabalha o dia-a-dia serena e disciplinadamente». Não era bem assim, mas para efeitos de prova de fidelidade política chegava e sobrava.

Até à queda do regime, o Grémio continuou a submeter regularmente «originais para censurar» (escrevia-o, preto no branco), mas só há registo de mais uma ocorrência. O remate de um editorial de Março de 1972 sobre o modelo de funcionamento da Farmácia em Espanha é tomado como excessivo. «Até dá vontade de mudar a botica para Espanha, não dá?». Se dá, que a vontade passe depressa. A frase não sai.
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