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7 junho 2021
Texto de Carlos Enes Texto de Carlos Enes Fotografia de Augusto Brázio; Pedro Loureiro Fotografia de Augusto Brázio; Pedro Loureiro

«A flauta é a minha voz»

​Rão Kyao é o fadista da Natureza e da condição humana. ​​​​​​​

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​O que diz o vento do Rão Kyao quando sopra numa flauta de cana? 
Esse vento é vida, é um sopro de vida. 

Revela mais o homem ou as leis da Natureza? 
​Revela o espanto do homem em relação à Natureza. A Natureza é que é a força. Essa força encontra dentro de nós uma simpatia. Nós projectamo-nos na Natureza e a Natureza projecta-se em nós. Unificamo-nos com a Natureza e isso dá muita força.  

O Guerra Junqueiro escreveu que «A arte ideal é a Natureza traduzida em cântico, Deus que se ouve e que se vê traduzido em música». 
​Isso diz tudo! É extraordinário, isso é uma coisa lindíssima. Ele diz tudo nisso. Procuramos a voz da Natureza para ela entrar em nós. E essa voz que nós conseguimos captar, essa voz vai dar voz à nossa voz. Temos de estar muito atentos e compreender como é que nos projectamos para conseguir perceber alguma coisa, para compreendermos o nosso interior.  

​Rão Kyao recorda as suas experiências a tocar para pássaros e camelos 

Ainda vai para o campo cantar ao desafio com os pássaros? 
Não me vou meter a tocar ao desafio com um pássaro, que ele “dá-me umas calças”! [risos] Os pássaros são cantores extraordinários. 

E o Rão Kyao tem uma flauta para cantar com eles. 
Algumas vezes, na Caloura, uma parte da ilha de São Miguel, já me aconteceu. Não pode ser de manhã, nem ao fim da tarde, porque aí os pássaros juntam-se todos e o canto fica como uma barragem de som. Já ao princípio, meio da tarde, cantam pássaros soltos. Estou convencido de que já consegui identificar e criar uma resposta ali, com um pássaro.​​​​

Como? 
Não é fazer o que ele faz, nem é ao desafio. É um certo tipo de vibração que ele pode captar. E isso pode criar um diálogo. Mas não é fácil! As notas que um pardal pode lançar, o tipo de entoação, de jogo, que ele faz, é irreproduzível por um humano. 

 
 

O canto dos pássaros já influenciou algumas composições suas? 
Sem dúvida. Tenho até um tema que se chama “O Canto dos Pardais”. É uma homenagem ao cântico dos pardais e a todos os pássaros grandes cantores. O rouxinol é o expoente máximo. Consegue estar uma hora a cantar e não repete uma única frase. É um improvisador absoluta- mente extraordinário. Quando se apanha um rouxinol à noite, sossegado, a cantar, tenho a impressão de que é a expressão musical mais superior, mais absoluta do mundo. 

E no Jardim Zoológico, como é que foi? 
Eu gostava muito de ir para lá. Um dia pus-me a tocar para os camelos, sem intenção nenhuma especial, e o camelo mais pequenino, chamemos-lhe um camelinho, o filho, veio todo contente e encostou-se a fazer muita força na rede, a esticar-se para mim e a ouvir a flauta. Pouco depois, vieram a mãe e o pai, mais reservados. Os três ficaram ali, pareciam fascinados com o som. 

O tema de abertura do novo disco, dedicado a Gandhi, chama-se “Respeito pela Natureza”. 
É um dos assuntos mais importantes da mensagem do Gandhi. Ele foi um ecologista, uma espécie de São Francisco de Assis do séc. XX. Induziu os indianos a terem respeito pela Natureza, a tudo o que vem da Natureza. E isso parece-me ser um ensinamento com uma actualidade cada vez mais urgente.  

O fascínio por Gandhi vem dos anos 70, quando foi aprender flauta para a Índia? 
​Sim. É um homem que projectou na Humanidade uma maneira de ver a relação entre os homens completamente revolucionária. A Humanidade ainda hoje não está preparada para compreender a mensagem dele. Um homem com uma atitude que abarca todas as religiões, todas as crenças, que é um pacifista no melhor sentido da palavra, activo, pacifista activo. É uma das respostas que poderia haver para todos os dramas que há no mundo.  

 


O que vamos ouvir no novo disco? 
​O percurso de um português que se projecta pelo mundo e vai tentar penetrar na alma do Gandhi. Vai tentar apreender qualquer coisa do sentimento do Gandhi, dos seus ensinamentos, e tentar pôr isto sem palavras, em música. Aí é que está o problema, que essa mensagem se torne evidente sem a ajuda das palavras. É esse o desafio da música.  

A propósito da voz, fiquei espantado quando o ouvi dizer que «uma música que eu não consiga cantar no banho não faz qualquer sentido»... 
​O ser humano tem muita força, mas é fraco em certos aspectos. Na relação com os outros, diz coisas que não diria para si próprio. De certeza que eu, sozinho, no banho, não vou cantar nada para agradar a alguém. E isso para mim é fundamental. Eu quero tocar música que seja verdadeira para mim.  

Boa deixa para o desafio do Gandhi: «A felicidade é quando aquilo que pensamos, o que dizemos e o que fazemos estão em harmonia». Isso é possível no mundo competitivo de hoje, mesmo na música? 
​É possível, mas não é fácil. Como músico, lidas com a música, com a verdade da música. E, depois, lidas com o negócio da música. Tento só tocar aquela música que eu canto no banho.  

Rão Kyao, o que é o fado? 
​O fado? É o canto poético da tristeza, acima de tudo. O fado é aquela nostalgia, aquela tristeza que o português tem endemicamente. Não é uma falta de alegria, mas antes uma maneira de ser, que os árabes também têm. Esse lamento tem de ser cantado profundamente, de certa maneira que redime. O fado bem cantado redime o homem e ajuda-o a curar-se.   

Como conseguiu que o saxofone e a flauta de cana substituíssem a voz do fado? 
​Repara, estás a pôr o problema de uma maneira não adequada. Quando nós dizemos que a voz está aqui e o instrumento está ali, isso para mim não existe. A flauta de cana é a minha voz. Quem está na música e vai aprofundando o seu sentido de identificação com o som e aquilo que ele diz, aproxima-se cada vez mais de cantar a verdade da música. Quem tem essa interioridade da música toca qualquer instrumento, porque vai transmitir essa interioridade ao instrumento. Estou a tocar a flauta como se estivesse a cantar o fado e tu estás a ouvir e… «eh pá! estou a reconhecer, ouvi as palavras!».  

É precisamente isso! 
​Só acontece porque eu estou a cantar, não estou a tocar o instrumento. O instrumento é apenas o veículo para transmitir aquilo que sentimos.  

Com uma flauta, imagino que é mais fácil suportar a pandemia. 
​Eu não confinei muito. Com o meu cuidado, saía e ia para as árvores, para o campo. Nunca deixei de fazer isso, até mais vezes do que antes. No princípio, o ar ficou mais limpo, aconteceu um ambiente extraordinário.  

​​«A música humilda-nos, torna-nos mais humanos, porque tocar bem não está nas nossas mãos» 

Um dos seus discos, no subtítulo, fala numa «Viagem sonora de cura e expansão». A música é para si terapêutica? 
​Sim, sem dúvida. O povo diz «Quem canta seu mal espanta». Eu ligo muito a música à bondade, ao espírito altruísta, ao outro, ao respeito. Se a gente toca bem, tornamo-nos mais humanos. Há também um sentimento de humildade, porque sabemos que o tocar bem não está nas nossas mãos. Está nas nossas mãos tentarmos, mas o conseguirmos não está nas nossas mãos. E isso humilda-nos.
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