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9 novembro 2021
Texto de Paulo Martins Texto de Paulo Martins

A farmácia dos bravos mineiros

​​​​​​​​​​​Centro de Estudos da Mina de São Domingos recorre ao arquivo histórico das farmácias.​

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Além do salário, o farmacêutico tinha direito a um suplemento financeiro, calculado com base numa percentagem tanto maior quanto menor fosse a despesa na preparação de medicamentos – manipulados, é claro. Segundo Felicidade Paixão Marques, era este o sistema em vigor, pelo menos na década de 1940, na Farmácia da Mason and Barry, empresa inglesa que explorou a m​ina de São Domingos, no concelho de Mértola, durante mais de um século. A fonte é considerada fiável: para escrever “Alguns aspectos sociais da região mineira de S. Domingos”, tese final do curso de Serviço Social, em 1947, a autora viveu com uma família da aldeia. Provou o pão que o diabo da mina amassou.

Configurando uma abordagem quase de natureza sociológica, «o documento é um retrato vivo do que se passava, que pouca gente fez», afirma José Zarcos Palma, do Centro de Estudos da Mina de São Domingos (CEMSD), organização independente, sem fins lucrativos, que se dedica à promoção e divulgação do património local. Obra de «um grupo informal de amigos que dispensa apoios, porque não há almoços grátis», no dizer de Luís Baltazar, membro da pequena equipa que montou o projecto de raiz, o CEMSD foi a primeira entidade a dirigir um pedido de informação ao Arquivo Histórico das Farmácias, dinamizado pela ANF. A iniciativa coube a João Ramos Nunes, que assim teve acesso a correspondência trocada com o antigo Grémio Nacional das Farmácias, a propósito do pagamento da quotização, numa fase em que a actividade da farmácia já era praticamente residual.

A exploração de pirite cúprica no primeiro empreendimento mineiro do país foi assumida em 1858 pela Mason and Barry, que a encerrou em 1964, por esgotamento do filão. Durante anos o único empregador da zona, é difícil determinar quantos postos de trabalho assegurou. De acordo com uma cronologia disponível no site do Centro de Estudos (www.cemsd.pt), empregava directamente 2.400 pessoas em 1916 – número que não inclui vínculos temporários. As povoações próximas do couto mineiro terão atingido perto de 10 mil habitantes. Hoje, na aldeia da Mina de São Domingos, não serão sequer uma centena.


A primeira exploração mineira remonta a 1858. A farmácia foi fundada em 1870

A farmácia, que fechou em Agosto de 1968, foi fundada em 1870, mas só em Outubro de 1947 passou a abrir ao público em geral, graças a autorização da Direcção-Geral da Saúde. O último director-técnico, que como os antecessores dispunha de habitação, foi José Ramos Proença. Nascido em 1907, em Idanha-a-Nova, chegou a presidir à Direcção da Caixa de Previdência da empresa.



As pesquisas do CEMSD permitiram identificar outros funcionários, como Manuel Rocha, farmacêutico em finais do século XIX, pai do médico Francisco Rocha, que exerceu clínica na aldeia, de 1923 a 1945. Sabe-se que Maria Stela Ribeiro foi a primeira técnica de farmácia da unidade, na primeira metade do século XX, e que um dos gerentes, Raul Pancada, fez parte, em 1932, do núcleo fundador do Club Recreativo.


Hospital tinha 20 camas de internamento, gabinete médico e sala de operações

O hospital, ao qual a farmácia seria anexada, só abriu em 1875 – curiosamente o ano de criação do Corpo de Polícia Privada da empresa. Dispunha de duas enfermarias de dez camas cada uma, gabinete médico e sala de operações. Funcionando como hospital civil, não prestava assistência apenas aos mineiros. Embora a maioria dos nascimentos ocorresse em casa, com recurso a parteiras, terá sido palco de partos, já que estaria equipado para o efeito.


O hospital estava equipado para partos, mas a maioria ocorria em casa, com recurso a parteiras

Na fase em que as intervenções cirúrgicas eram realizadas por um médico de Lisboa, tinham lugar apenas uma vez por quinzena. Um clínico residente na mina encarregava-se das consultas diárias, gratuitas, das 14 às 17 horas, podendo fazer visitas domiciliárias. António Aresta Branco, médico na aldeia, destacou-se durante a I República. Nomeado em 5 de Outubro de 1910 governador civil de Beja, manteve-se no cargo até Julho de 1911. Foi deputado constituinte e, em 1918, ministro no Governo de Sidónio Pais.

Residências particulares ocupam hoje o espaço do hospital, construído no local da antiga ermida de São Domingos, do século XIII. Era a única edificação existente em 1850 na área onde viria a nascer a aldeia, facto então assinalado numa lápida.  Segundo notícias difundidas em 1897, foram descobertas sepulturas sob a ermida, no decurso de escavações. Faltando inscrições susceptíveis de as datar, emergiu a hipótese de remontarem à época da ocupação romana. Porém, na revista especializada O Archeologo Português, o consagrado José Leite de Vasconcelos exprimiu dúvidas acerca da antiguidade: «Nada revelaram essas sepulturas que as fizesse considerar muito antigas, antes há todas as probabilidades de que sejam cristãs».


Em Junho de 1944, acidentes fizeram nove vítimas, como atesta este documento do Centro de Estudos da Mina

Farmácia e hospital não teriam mãos a medir, já que os acidentes de trabalho eram frequentes – só em Junho de 1944, registaram-se nove vítimas. O primeiro acidente documentado teve lugar a 27 de Junho de 1863, anos antes da instalação das unidades de saúde. Tratou-se do esmagamento do braço esquerdo do ferroviário Francisco Inácio, que só no dia seguinte seria amputado, a sangue frio. Henrique Damião Rosa, soterrado em Outubro de 1965, foi a última vítima mortal na contramina. Pelas mãos de José Damásio Ribeiro, funcionário da Caixa de Previdência da Mason and Barry entre 1948 e 1956, passaram muitas listas de sinistrados. «Às vezes dezenas, num só mês, na contramina e nas fábricas de enxofre», recorda. Não dispondo de seguros, a empresa assumia os encargos da percentagem de incapacidade fixada pelos médicos.

A mina não era, de todo, um paraíso ambiental. Luís Baltazar confirma a percepção de que, entre os coutos mineiros alentejanos desactivados, foi no de São Domingos que ficou o maior passivo neste domínio, bem para lá dos danos causados pela operação: «É muito superior a qualquer das outras. Não tenho grandes dúvidas».

Durante décadas, grassaram doenças – da tuberculose ao paludismo; das maleitas gástricas à silicose; da febre tifóide ao alcoolismo. A lavra em profundidade, com escassa ventilação, deixava nos mineiros sequelas para a vida. As chaminés da fábrica de enxofre da Achada do Gamo – como escreveu Heitor Domingos, filho de mineiros, no livro “Recordações” – «cuspiam baforadas de fumo espesso e negro» e espalhavam cinzas por todo o lado. À mesa, só raramente chegavam frescos. Mas pela garganta escorria muito álcool…

Ao analisar arquivos do Ministério do Trabalho, João Nunes constatou que os relatórios médicos da Caixa se referiam, com frequência, à problemática sanitária. José Damásio Ribeiro assevera que no seu tempo a principal preocupação residia nas chamadas sezões, febres intermitentes, e na tuberculose, que não atingia apenas quem descia aos subterrâneos. A aglomeração de pessoas favorecia os contágios. «Ia muita gente parar ao lazareto», local de isolamento para recuperação ou quarentena, no caso de São Domingos situado fora do núcleo populacional.
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