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1 maio 2025
Texto de Teresa Oliveira | WL Partners Texto de Teresa Oliveira | WL Partners Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

«A doença vive comigo, não sou eu que vivo com a doença»

​​​​​​Personal trainer e culturista com esclerose múltipla, João Pedro Marques transformou o desporto em força, para si e para os outros.​

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Há 14 anos, João Pedro Marques foi diagnosticado com esclerose múltipla. Hoje, aos 48, é um exemplo de resistência a uma doença inflamatória do sistema nervoso central (cérebro e medula espinhal) que, entre outras consequências, pode comprometer a força e a mobilidade.

O cansaço foi o primeiro sintoma que sentiu, tinha 33 anos e uma vida muito ativa. Trabalhava na área da segurança, competia em culturismo e treinava com intensidade, o que o levou, numa primeira fase, a desvalorizar a fadiga.

«Sentia-me muito cansado, mas achava que era por trabalhar muito e dormir pouco. Nada que não fosse habitual». Uma ida ao hospital descansou-o, com o cansaço a ser atribuído à desidratação ― a «diversidade de sintomas e a ausência de indicadores específicos dificultam o diagnóstico», alerta a Sociedade Portuguesa de Esclerose Múltipla.

Uma dor intensa na nuca e a perda de sensibilidade num braço deram o alerta final. Depois de acabar o trabalho e de treinar, porque é esse o seu nível de compromisso, dirigiu-se ao hospital e ficou imediatamente internado. Durante três semanas, fizeram-lhe testes e despistagens até se perceber que a massa entretanto detetada na sua cabeça era, afinal, um conjunto de lesões cerebrais provocadas pela esclerose múltipla. «Quando saí do hospital, tinha 12 lesões. Uma na cervical e 11 na cabeça. Havia ainda outras, que, por serem tão pequeninas, já não contam», explica.

Iniciou imediatamente a medicação através de injeções semanais que foram a consequência mais dura que sofreu da doença. «Durante quatro anos, passei todos os dias com febre, com 37, 38 graus», lembra. Em alguns episódios, a temperatura ultrapassou os 40 graus e nem força tinha para chamar a mulher. «Dores muito grandes na lombar» também o afligiram durante esse período, sem que as dificuldades o fizessem parar. Trabalhava com febre, treinava com febre, competia com febre e foi campeão. «Habituei-me», conta. «Não há pessoas que cegam e se habituam? Quem não tem um braço ou uma perna não trabalha?».


O culturismo é uma das paixões de João

Com a disciplina e o foco que lhe são característicos, recorda que tinha «de levar a vida para a frente, de trabalhar o dobro para ganhar» – «não quero ser um coitadinho, não sou um coitadinho». Apesar dos efeitos secundários do medicamento injetável, passados três anos a doença estabilizou. E o alívio chegou quando os médicos, após as suas insistências, lhe deram uma nova medicação oral, sem efeitos secundários. «Nasci outra vez, nem me lembro que tenho a doença», afirma, «foi maravilhoso».

Há cerca de 12 anos, abandonou o trabalho como segurança e canalizou a sua paixão pelo desporto para a profissão, tornando-se personal trainer. Ganhou também uma rotina mais equilibrada, com tempo para descansar e para a família. «A partir do diagnóstico, o meu foco da musculação é a saúde: a esclerose rouba força e músculo, e o treino ajuda-me a contrariar esse processo e a combater a doença», tal como o muito cuidado com a alimentação, nomeadamente com gorduras e fritos. «Se a esclerose já nos causa dor e atrofias, ter uma má alimentação ainda a piora. Eu já tinha cuidado por causa do desporto, não me custou». Na brincadeira, costuma mesmo dizer: «consegui arranjar uma doença que se dá bem com o desporto de que mais gosto. Tive essa sorte». 


O treino ajuda João a manter a força e o músculo

Há alguns anos, a sua história chegou à televisão e a partir daí começou a ser contactado por pessoas que, tal como ele, vivem com esclerose múltipla. Pessoas desmotivadas, fechadas em casa. Um deles é Edu. «Felizmente começou a falar comigo pela Internet. Disse-lhe para ir ao ginásio, e ele começou a treinar e a ganhar outro alento». Edu seguiu os passos do seu mentor e também é personal trainer e culturista. «Sou amador, ele é profissional de bodybuilding e campeão. Já elevou a fasquia bem mais alta do que eu», afirma João, com orgulho.​

Também o contactou uma pessoa que estava há oito anos numa cadeira de rodas, depois de uma forte crise. «Começou a fazer fisioterapia comigo aqui na piscina e seis meses depois viemos para a sala de musculação. Chegou ao ponto de andar sozinho em casa, levantava-se e já não ia para a cadeira». Com a pandemia e o fecho dos ginásios perdeu algum progresso, mas já está de volta aos treinos. «E foi quando lhe disse: "não vou ajudar-te, vou indicar-te o caminho, porque a ajuda para os nossos problemas somos nós”». Dando o seu próprio exemplo, «conto com os meus para me ajudarem, mas se eu não tiver força não chego lá».

Estes são apenas dois exemplos de pessoas com esclerose múltipla para quem João Pedro Marques foi um farol. Ele próprio, tal como Edu, é um caso de estudo para os médicos, por serem pessoas que mantêm um excelente estado físico apesar da doença. Aliás, a importância do desporto é cada vez mais reconhecida, e João, que trabalha num grande ginásio nos arredores de Lisboa, diz que os médicos têm aconselhado os doentes a irem para o ginásio treinar. «Com doenças neurológicas, como a esclerose, depressões, etc., pedem que trabalhem o músculo, ganhem força, ganhem massa muscular. Porque se a doença se contraria, vamos contrariar a nossa doença!», exclama.


​Ao longo dos anos foi tendo surtos provocados pela esclerose, mas não os sente. 14 anos após o diagnóstico, tem 22 lesões no cérebro, mas continua a treinar e a trabalhar com intensidade. «Vão morrendo células no cérebro, mas também vão nascendo outras», diz. « Estou sempre a mexer as mãos porque me doi a articulação. Sinto que estou a perder força, já não faço certos treinos. É o corpo a dizer para ter calma. Preciso de lembrar-me de que já não tenho 20 anos e vivo com um problema de saúde». Mas trata-se de uma calma relativa, porque a última vez que fez uma prensa de pernas «com mais força» levantou 700 kg. Uma energia que lhe é inata e que o seu lema bem caracteriza: «A doença é que vive comigo, não sou eu que vivo com a doença. É assim que tenho de levar a minha vida».
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