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3 março 2022
Texto de Sandra Costa Texto de Sandra Costa Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro Vídeo de André Torrinha Vídeo de André Torrinha

A bailarina dança sobre a doença

​O diagnóstico de esclerose múltipla deu-lhe urgência de viver.

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Quando Cris Aysel descobriu que sofria de esclerose múltipla, a imagem que associava à doença era uma cadeira de rodas. A bailarina ficou sem chão, sentiu o mundo desabar. O diagnóstico chegou no ano em que decidira apostar na dança. Já tinha abandonado o emprego a tempo inteiro como psicóloga. Depois do choque inicial, Cris aprendeu a ler os sintomas e a gerir os surtos desta doença neurológica crónica, que afeta o sistema nervoso central e prejudica a comunicação entre o cérebro e o resto do corpo. A evolução da doença é uma incógnita, por isso Cris prefere não pensar demasiado no futuro. A verdade é que, 11 anos depois, continua a dançar, dá consultas de psicologia, leva uma vida «normal». Ficou a saber que tem mais força do que imaginava. «É gratificante perceber que consigo. Sentir que, apesar de ter esclerose múltipla, eu não sou a esclerose múltipla».
 
Aos quatro anos descobriu o balé, na faculdade apaixonou-se pelas danças orientais. Cris não fez da dança a sua única profissão, mas nunca a abandonou, conciliando os espetáculos e o ensino da dança com o emprego como psicóloga. Aos 34 anos, decidiu seguir o apelo da dança. «Quis investir na minha bailarina», diz em voz serena, a leve entoação revelando a infância passada no Brasil. Fundou a associação Aysel Dance, e transformou em estúdio de dança e consultório de psicologia o espaço onde os pais tinham gerido um café e uma retrosaria. 


O diagnóstico chegou no ano em que Cris decidira apostar na dança. Já tinha abandonado o emprego a tempo inteiro como psicóloga

Estava tudo encaminhado. Concretizar o sonho da dança exigira coragem, mas a vida trocou-lhe as voltas e pediu-lhe ainda mais coragem. A primeira visita da esclerose múltipla veio disfarçada de nevrite ótica, uma inflamação do nervo ótico que lhe embaçou uma vista e a obrigou ao primeiro de muitos tratamentos com corticoides. O diagnóstico chegou após seis meses de incerteza. «Foi terrível, senti que a minha vida tinha acabado ali». Não era o fim, antes a porta de entrada no universo sinuoso desta doença pouco clara, em que cada caso é um caso. 

«A esclerose múltipla é conhecida como a “doença das mil caras”, porque pode expressar-se de diversas formas», explica Cris, que se tornou especialista no tema. No seu caso, a doença surge na forma de surtos-remissão, que afetam temporariamente algumas capacidades sensitivas e, sob efeito de medicação, regridem, sem (quase) deixar sequelas. Depois da perda de visão, sofreu parestesias, que são perturbações da sensibilidade tátil, por exemplo ardor interno ou dormência numa perna ou num dedo. Já teve episódios de cansaço extremo, uma sensação de «perda completa de energia». Mas nenhum surto, até agora, lhe retirou a funcionalidade ou a impediu de dançar. 


A dança e o exercício físico são aliados para se manter saudável o mais tempo possível. Dançar requer energia. Criar e decorar as coreografias fortalece a memória

Cris acredita que a esclerose múltipla lhe tem mostrado uma  «cara   mais   simpática». O mais difícil é a incerteza, o medo do futuro. «E se um dia deixo de conseguir andar, controlar o meu corpo, ou perco capacidades cognitivas?», angustia-se às vezes. Depois centra-se no presente, sabe que «não vale a pena ficar ansiosa com aquilo que ainda não aconteceu». Ter a consciência de que importa «desfrutar hoje, porque nunca sabemos o dia de amanhã» ajuda-a a controlar a ansiedade do futuro. 

Cris nunca dançou tanto como desde que recebeu o diagnóstico. Nasceu-lhe uma urgência de viver o aqui e agora. «Vou dançar o máximo que puder, enquanto sentir que tenho condições e capacidade». Quando sente dificuldade nalgum movimento, adapta. «Sai-me mais do pêlo, mas consigo», diz, com um sorriso. Sente até que cresceu como bailarina. Cris vê a dança e o exercício físico como aliados para se manter saudável o mais tempo possível. Dançar requer energia. Criar e decorar as coreografias fortalece a memória. «Ao treinar, descubro novos caminhos corporais e estou sempre a ativar o cérebro», explica. 

 
No consultório de psicologia e no estúdio de dança, é procurada por pessoas com esclerose múltipla. Cris sente que as consegue ajudar

Assumir a esclerose múltipla foi «muito difícil» e, durante anos, Cris não falava sobre a doença nas redes sociais. A bailarina tinha receio de que deixassem de a contratar, mas era mais do que isso. «Percebi que era também o meu próprio medo de quem sou agora. Se não for capaz de fazer, as pessoas vão olhar-me e tratar-me de forma diferente?». Foi um processo interno, «fazer o luto da Cris antes da doença, o luto da saúde». O tempo ajudou-a a aceitar, sobretudo desde que começou a corresponder aos convites da Sociedade Portuguesa de Esclerose Múltipla (SPEM) para partilhar a experiência. Hoje sente-se grata por inspirar outras pessoas recém-diagnosticadas a não perder totalmente o chão. «É claro que a vida muda, mas pode ser adaptada e continuar a ser boa e valer a pena», afirma.

No estúdio luminoso, a professora dá as instruções em voz firme e tranquila a Inês Salsinha. A estudante universitária aprende danças orientais há um ano. Conheceu Cris através da tia, também ela aluna e portadora de esclerose múltipla. Ao consultório de psicologia chegam ainda pessoas com a doença. Cris sente que consegue ajudá-las, mesmo se a doença assume formas tão diferentes, pois o mais importante é comum: gerir o medo da incapacidade, aceitar que é natural fraquejar às vezes e resistir. «Posso dizer-lhes, porque sei: nunca vão ser menos por ter uma doença, às vezes até descobrimos que somos mais». Uma das coisas boas foi descobrir a força que tem. «Encontramos sempre força dentro de nós para seguir em frente». 



Cris nunca dançou tanto como desde que recebeu o diagnóstico. Nasceu-lhe uma urgência de viver o aqui e agora

Um dos momentos mais difíceis foi quando teve de aderir a uma medicação que comprometeu o desejo de ser mãe. Na sequência dos surtos, o neurologista propôs-lhe substituir a medicação intramuscular que injetava semanalmente por outra, de libertação lenta. Cris resistiu, apesar dos sintomas gripais que durante oito anos suportou como efeitos secundários. Na altura, estava a tentar engravidar e a nova medicação era incompatível com os tratamentos de fertilidade e uma eventual gravidez. Acabou por acatar o conselho do médico. «O risco de a doença evoluir era grande sem a medicação, por isso tive de optar entre a minha saúde e ser mãe». 

O quotidiano de Cris Aysel é «intenso», repartido entre a atividade de professora de dança, as consultas de psicologia e a gestão da escola All for Dance, que funciona no seu estúdio e abrange professores de outras áreas, como pilates, ioga, zumba e diversos tipos de dança. Faz formação regularmente nas duas áreas e, por prazer puro, está a fazer uma formação em teatro. «Enquanto descobrimos novas áreas, vamos sempre crescendo», defende. Cris evita sobre- carregar-se, pois o cansaço e o stress são prejudiciais à doença, mas aproveita para fazer tudo o que gosta: ler, ver cinema, viajar, conhecer novos lugares e estar com a família, em especial o marido, a irmã e a sobrinha Francisca, de três anos, que a faz sentir-se «um pouquinho mãe». Aproveita a vida, «enquanto puder». A expressão, repetida amiúde, realça a noção que tem do tempo que rege a sua vida, que rege qualquer vida: «É no agora que posso desfrutar».

 



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