Há um ano, Inês Prazeres e José Vilhena souberam que a filha sofre de gangliosidose GM2, conhecida como doença de Tay-Sachs. Recusaram baixar os braços e não perderam o ânimo. Teimam em olhar os aspectos positivos, escolheram ver a vida com «óculos cor-de-rosa». A Margarida continua a ser uma criança feliz e a sua alegria é contagiante. «Ela lança gargalhadas de fazer inveja. Tenho a miúda mais feliz que poderia ter. Como posso passar o dia a chorar?», pergunta Inês.
Os pais da Margarida recusam baixar os braços. Olham a vida com «óculos cor-de-rosa»
Ainda não tinha três anos quando os primeiros sinais de gaguez anunciaram a doença, que demorou dois anos a diagnosticar. No espaço de seis meses a fala estagnou. Seguiram-se crises convulsivas parciais. O primeiro diagnóstico, epilepsia, não explicava a regressão acentuada no desenvolvimento. A Margarida parou de falar e começou a perder capacidades motoras. Deixou de conseguir pegar nos talheres para comer sozinha e de ir sem ajuda à casa de banho. Perdeu equilíbrio, mas ainda caminha. Tornou-se «um bebé grande».
O fim da incerteza chegou pela voz do neuropediatra António Levy Gomes, do Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Receber o diagnóstico foi «aterrorizante», lembra José Vilhena. «A nossa estrutura familiar tão sólida e estável deparou-se com um problema muito, muito grande». Naquele dia, as vidas de Inês, José, Margarida e da irmã Madalena mudaram para sempre. A doença tinha invadido a vida da pequena «terrorista», trapalhona, bem-disposta e com um sentido de humor único, como a caracterizam os pais. A menina que adorava cantar e sabia de cor a letra do "Pica do 7", de António Zambujo.
Durante 15 dias, Inês e José viveram anestesiados com uma «sensação de terror». Até que descobriram que se ia realizar em Madrid um congresso europeu sobre a doença de Tay-Sachs, destinado a familiares. Resolveram participar. «Era fundamental sabermos como ajudar a nossa filha», diz José Vilhena. O contacto com outros pais foi inspirador. Sentiram-se «contaminados por um espírito positivo». Foi o início de uma vida nova para toda a família. Até porque, como diz Inês Prazeres, «a ausência de diagnóstico é infernal. Quando temos um diagnóstico, por pior que seja, conseguimos começar a viver com o que temos e ir à luta». De regresso a Portugal, pegaram nas miúdas e foram de férias. Precisavam "desligar", ordenar as ideias. No final do Verão começaram a reagir. Queriam fazer alguma coisa pela Margarida, mas também pelas restantes famílias afectadas pela Tay-Sachs.
Inês, designer de comunicação, criou o site docemargarida*, onde apresenta a doença e conta a história da filha. O objectivo era conhecer outros casos em Portugal. Até agora descobriram 14 famílias. Três já perderam as suas crianças. Em conjunto, pais e mães criaram uma associação para combater a Tay-Sachs e outras gangliosidoses. Chama-se DOCE e propõe-se «divulgar, orientar, combater e enfrentar» a doença. José Vilhena concilia o trabalho como engenheiro do ambiente na Câmara Municipal de Coimbra com a presidência da associação.
Os pais sentem-se afortunados porque a doença tirou à Margarida a capacidade de chorar, as emoções negativas. Continua a rir e a divertir-se com o que a rodeia. O espírito positivo das duas filhas dá-lhes energia e eles retribuem. Escolhem viver o bom que ainda têm. «A Margarida deixou de falar, mas ainda anda. Quando deixar de andar, provavelmente ainda ri», diz José.
Quando um se vai abaixo, o outro diz: «Lembra-te de dez aspectos positivos que a doença da Margarida nos trouxe». Não é difícil, asseguram. Confirmaram que a união familiar é inquebrável, o apoio dos pais é incondicional, as coisas materiais não interessam nada e têm «os melhores amigos do mundo». «Desde o início carregam este peso connosco, apoiam-nos em tudo», diz José Vilhena.
A Margarida gosta muito da Associação de Paralisia Cerebral de Coimbra, onde passa os dias
O diagnóstico mudou a forma de estar e, sobretudo, de olhar a vida. Completamente. «Não há zangas em casa, não há ralhetes. Se nos atrasamos de manhã, paciência», explica Inês. José sai bem cedo para o trabalho, Inês leva as crianças à escola. Inscreveu-se num ginásio para ganhar massa muscular e conseguir descer os dois andares do prédio com a filha ao colo. Em breve a família vai mudar-se para outra casa, com elevador. A Margarida passa os dias na Associação de Paralisia Cerebral de Coimbra (APCC), com uma equipa «fantástica» de terapeutas e fisioterapeutas. Com eles trabalha estímulos que preservam as capacidades motoras e cognitivas. «Deixo-a feliz e, quando a venho buscar, encontro-a feliz. Vou trabalhardescansada».
Aos fins-de-semana fazem jantares com amigos, pois as idas aos restaurantes tornaram-se complicadas. Deixaram de viajar mas, às vezes, deixam as meninas com os avós e vão passar um fim-de-semana juntos.
A doença está estável há um ano. Notam apenas que a Margarida tem perdido força nas mãos, o que faz com que deixe cair mais facilmente os objectos. «Ela é persistente. Chega a ir cinco vezes ao chão até conseguir agarrá-los», diz a mãe. «Ela é a grande heroína nisto», acrescenta o pai.
Vivem um dia de cada vez e evitam pensar no futuro familiar. Para a associação têm muitos planos. Fervilham ideias para dar a conhecer a doença, encontrar e ajudar outras famílias e angariar fundos para as investigações em curso sobre a Tay-Sachs.
Crianças com diferentes problemas passam os dias em harmonia
A boa notícia é que há investigações com resultados positivos. Testes feitos em animais mostraram que a doença pode ser revertida. O mecanismo desta doença, descoberta no século XIX, é conhecido: devido a uma mutação genética, o organismo não produz uma enzima que destrói o lixo celular, o qual se acumula, levando à morte das células. «Falta o caminho para a cura, investir na terapia genética que permite ao organismo começar a produzir a enzima em falta», explica José Vilhena. Na prática, faltam dez a 15 milhões de euros para apoiar a investigação da Universidade de Cambridge, a mais avançada no tema. «Pode ser possível salvar cerca de 70 crianças que sofrem de Tay-Sachs na Europa», diz José Vilhena. Este é o número de casos referenciados pelas cinco associações europeias de Tay-Sachs. Estima-se que o número real seja muito superior.
Há pouco mais de um ano, Inês e José ouviram a notícia que mudou as suas vidas. Depois do embate inicial, fizeram do medo coragem e iniciaram a luta. Querem que Portugal inteiro conheça a Tay-Sachs e exija que a vida da Margarida e de outras crianças como ela não fique refém do financiamento da investigação que já provou poder reverter a doença.