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7 junho 2021
Texto de Sandra Costa Texto de Sandra Costa Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro Vídeo de André Oleirinha Vídeo de André Oleirinha

A cantar no país das uvas

​​​​​​Cuba, Vidigueira e Vila de Frades, onde o cante se sente na alma e o vinho fermenta na talha.​ 

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Ao fim da tarde, os homens juntam-se no “balcão do cante” da Adega da Casa de Monte Pedral, na Cuba alentejana. São oito, não fosse a pandemia seriam 20 ou mais. Chegam do dia de trabalho, encostam-se ao balcão, conversam enquanto petiscam azeitonas, queijo de ovelha e presunto. Na mão, um copinho de vinho da talha feito na casa. Aquecem as vozes. Há uma certa solenidade quando o ritual ancestral do cante alentejano arranca nas vozes potentes e simultaneamente melodiosas daqueles homens sérios, de pé ao redor da mesa, mãos nos bolsos, o peso do corpo alternando entre uma perna e outra. As vozes tornam-se mais vibrantes à medida que o vinho aquece a alma. 

No cante alentejano celebra-se a vida. A alegria e a tristeza. Durante o dia, o coro das vozes espantava o sacrifício do duro labor nos campos, à torreira do sol ou à chuva. À noite, com uma “latinha” de vinho na mão, os homens saudavam o fim da labuta diária, esqueciam a fome e as misérias da vida que lhes calhara na sorte nos tempos em que nascer no Alentejo era para uma imensa maioria de homens e mulheres sinónimo de trabalho de sol a sol. Hoje, como antes, o cante alentejano faz parte do quotidiano. «Está sempre presente. Há sempre um jantar, um grupo de amigos e alguém a cantar alentejano», explica Ana Guerreiro, «nascida e criada em Cuba». O marido da médica cirurgiã, que exerce no hospital de Beja, a 20 quilómetros, é um dos oito homens em redor da mesa.  


Secretos de porco preto com migas de azeitona é uma das iguarias da Adega da Casa de Monte Pedral

É um crime visitar esta adega e não provar o feijão com carrasquinhas, um cardo que se apanha nos campos. Outras iguarias são os secretos de porco preto com migas de azeitona e as sopas de toucinho, agora chamadas sopas de tomate com carne, «ou então ninguém as come», brinca o Chef Pedro Soudo, filho do proprietário. Para descobrir os melhores locais onde comprar pão, queijo, chouriço, linguiça ou boa carne, basta perguntar a quem é da terra. A confiança é total quando se recebe como resposta «pode haver igual, melhor não há!».  


Em Vila de Frades, um novíssimo centro interpretativo conta a história milenar da produção do vinho da talha

A frase ilustra o bairrismo, brio ou vaidade, escolha-se a melhor palavra, que os cubenses colocam no que fazem, seja cantar o cante ou produzir vinho da talha, uma tradição que vem do tempo dos romanos e todos os anos se repete nas casas particulares, tabernas e adegas. As enormes pipas de cerâmica que decoram as tabernas guardam o fruto de um trabalho diário. Em Setembro as uvas moídas chegam à talha, em Novembro prova-se o vinho, que nasce da fermentação acelerada pelo mexer diário. A festa de São Martinho (a 11 de Novembro) junta amigos à volta da mesa e do cante, num ritual antigo. Quase todos produzem vinho da talha, mas nem todo o vinho é bom, avisa Ana Guerreiro. «Como o meu marido diz, “o vinho ou é bom ou não presta!”». A verdade é que fazer vinho da talha é trabalhoso, requer «muito asseio e dedicação», mas não basta. «Nunca o vinho sai igual, é uma incógnita», confidencia José Soudo, conhecido por primo Zé, que na Adega da Casa de Monte Pedral tem 28 talhas.  


Nas suas obras, o escritor e jornalista Fialho de Almeida denunciou as injustiças sociais no Alentejo monárquico

A opressão que os homens exorcizavam no vinho e na música está pendurada em frases nas paredes do Museu Literário Casa Fialho de Almeida e nas vozes e rostos calejados que, em registo vídeo, testemunham as vidas duras que viveram. «Formam-se então bandos de trabalhadores à voz de um chefe (…) e a horrível faina começa sob os 50 graus do sol, num céu de chumbo irradiante», escreveu o escritor e jornalista na obra “Ceifeiros”. Médico de formação, que de si mesmo disse ser um «desgraçado com alma», Fialho de Almeida viveu entre Vila de Frades e Cuba os últimos anos da monarquia, e fez do inconformismo e da denúncia das injustiças sociais um modo de vida. Do terraço da casa-museu avista-se o casario, onde sobressaem algumas casas senhoriais, como a que pertenceu a José Joaquim Palma Borralho. O proprietário da moagem Palbor foi um grande benemérito, que a Cuba ofereceu a electricidade em 1918, equipou o hospital e a escola primária, e deu de comer a muita gente. Diz-se também que deixou uma mão-cheia de filhos ilegítimos, como à época era costume.  


Na Igreja Matriz de São Vicente, os azulejos barrocos lembram os famosos tapetes de Arraiolos

Na Igreja Matriz de São Vicente, revestida a azulejo barroco que lembra os famosos tapetes de Arraiolos, o povo procurava consolo e esperança para a morte e o sofrimento, os temas essenciais na catequética da região. «O Alentejo foi uma experiência de colónia, com uma esmagadora maioria da população submetida a um senhor», resume o técnico de museu Nuno Sota.  

As rectas que cruzam a planície alentejana estão ladeadas de oliveiras, muitas recém-plantadas. O olival intensivo substitui os tradicionais campos de trigo, tornando obsoletos os versos do cante: “Ó Cuba, terra bendita, rodeada de trigais”. Em Vila de Frades, a 14 quilómetros, um novíssimo centro interpretativo, equipado com moderna tecnologia, conta a história milenar da produção do vinho da talha. Entre os tesouros ali guardados contam-se grainhas de uva encontradas no decurso das escavações da villa romana de São Cucufate, habitada pelos romanos entre os séculos I e IV d. C., que provam que estes já dominavam o processo de produção.  


A magnífica construção de pedra, tijolo e argamassa da villa romana de São Cucufate encerra uma história com 2.000 anos

A villa, uma das mais bem preservadas da Península Ibérica, funcionou como convento até à extinção das ordens religiosas em Portugal, em 1834. A magnífica construção de pedra, tijolo e argamassa encerra uma história com 2.000 anos. A história das herdades agrícolas ou montes, que pontuam a planície e fizeram dos braços dos homens a força que fez brotar da terra o vinho, os cereais e o azeite. Do primeiro andar do que resta do edifício, que seria a habitação dos senhores, por cima do celeiro e da adega, avistam-se as ruínas das termas, do aqueduto que conduzia a água desde a serra, do templo do século IV e da villa original do século I, habitação dos trabalhadores agrícolas. A toda a volta, os sentidos gozam o colorido de malmequeres, papoilas, rosmaninho, alfazema e alecrim sobre os campos verdes de oliveiras e vinha, o cheiro intenso da erva molhada, o latir dos cães das quintas vizinhas e o chilreio alegre de pegas, andorinhas, pardais e estorninhos. A Fifi, a cadela de Gracinda Palma, que conduz as visitas guiadas, investiga alegremente o espaço e dá-se à festa a quem se queira aproximar.  


Na Vidigueira, Manuel Carvalho mostra a arte da olaria, aquilo que lhe «tira o dormir»

Mesmo ali ao lado, na Vidigueira, Manuel Carvalho mostra a arte da olaria a que se dedica há 30 anos a quem o visite na garagem transformada em ateliê. «Isto é o meu mundo, é o que me tira o dormir», diz no jeito alentejano de falar. O seu artesanato representa o Alentejo, mas também temas universais, como os refugiados que cruzam o Mediterrâneo e a pandemia. Depois de desfrutar da tradição, o visitante encontra na Quinta do Quetzal um toque de modernidade. O projecto de um casal holandês alia a produção de vinho ao enoturismo, que inclui restaurante, loja e um centro de arte. Do topo da adega, o olhar alonga-se pelo branco do casario da Vidigueira e de Vila de Frades, o verde dos campos e, ao fundo, a serra do Mendro, a delimitar o Alto do Baixo Alentejo. O horizonte feito do encanto infinito da planície alentejana. 


Na Quinta do Quetzal, um projecto de um casal holandês, encontra-se um centro de arte contemporânea

 

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