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14 maio 2021
Texto de Paulo Martins Texto de Paulo Martins Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

A bem da nação

​​A estreita margem de manobra do Grémio das Farmácias sobre o salazarismo.

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​Dezenas de cartões-de-visita agradecendo votos de aniversário ou de boas festas, presumivelmente escritos pelo próprio Oliveira Salazar – de secos «agradece» e «agradece reconhecido», a mais elaborados, como «agradece e retribui as amáveis BF de V. Exas.». Um telegrama telefonado para a Cruz Vermelha, em Setembro de 1968, manifestando «ardentes votos pelo restabelecimento» do ditador, depois do acidente que viria a ter um desfecho fatal. Exposições ao presidente do Conselho acerca da situação do sector. E manifestações de apoio a posições políticas, estranhas ao universo farmacêutico. O Grémio Nacional das Farmácias (GNF) conservou zelosamente vários indícios da estreita margem de manobra de que dispunha na relação com o poder, sob o regime corporativo. Sempre «A bem da Nação», a frase com que terminava na época toda a correspondência.


Muitos dos agradecimentos por votos de aniversário ou de boas festas terão sido escritos pelo próprio ditador​

No acervo do GNF, actualmente em sistematização no âmbito do Arquivo Histórico das Farmácias, a correspondência mais remota, datada de 1939, ainda é da responsabilidade do Grémio Distrital dos Proprietários de Farmácia de Lisboa, presidido por Manuel Rodrigues Loureiro. Os estilhaços da II Guerra Mundial abatem-se sobre o país, oficialmente neutral. Com o preço dos produtos químicos a disparar (chegou a atingir 300 por cento), o garrote aperta-se. Em pouco tempo, são enviados para São Bento dois telegramas e outras tantas cartas. A de 17 de Outubro desse ano denuncia casos de concertação entre produtores nacionais para «redução nos descontos que constituem lucro da farmácia».


O Grémio rodeava-se de todos os cuidados quando se dirigia ao chefe do Governo

Mais de uma década volvida, em 12 de Abril de 1950, Almeida Pinto, presidente do Grémio, pede a intervenção de Salazar para remover do Decreto n.º 37.762 o artigo 12.º, que autorizava o fornecimento de medicamentos por serviços de instituições enquadradas na Federação das Caixas de Previdência, fazendo concorrência às farmácias. Tratava-se de uma nova tentativa, depois de um telegrama alertar para a «possibilidade de ruína» do sector, se a norma entrasse em vigor. Entrou mesmo, a 24 de Abril, porque aos costumes Salazar nada dizia, a não ser através dos protocolares cartões-de-visita.

O chefe do Governo também se terá fechado em copas ao receber, em Março de 1955, uma carta de seis farmacêuticos da Avenida da Igreja, em Lisboa – cujo envio se presume, embora a cópia disponível não indique a data exacta, limitando-se a identificar os signatários. Dirigida ao «ilustre catedrático e presidente do Conselho de Ministros», alinhava um rol de queixas: elevados encargos a que eram obrigados, autorização de instalação de novas farmácias no bairro de Alvalade e venda de medicamentos em serviços públicos, retirando-lhes clientela. A missiva deve ter seguido directamente para o arquivo governamental, porque não há vestígios de resposta.


Um telegrama que procura demonstrar total fidelidade ao regime

«Apreciando as insólitas declarações do Pandita Nehru e do governador de Cantão, lavra o seu veemento [sic] protesto contra a pretensão de interferências extranhas [sic] à soberania portuguesa, nas províncias lusitanas de [sic] Índia e Macau». Vertidas em telegrama de 17 de Fevereiro de 1950, as palavras de Almeida Pinto perdem em respeito pela língua pátria – e em desconhecimento geopolítico, porque Macau não estava sob ameaça – o que ganham em pressa de mostrar fidelidade ao regime. Perante os sinais de que o cerco às possessões lusas na costa indiana começava a apertar-se, o GNF entra no cortejo de instituições que juram defender “Portugal do Minho a Timor”.

No início de Fevereiro de 1950, Nehru proclamara no Parlamento de Nova Deli que Goa deveria «reunir-se» à Índia. O homem-forte do jovem país exigiu por essa altura a fixação de um calendário de transferência dos territórios. Já tinham sido estabelecidas relações diplomáticas, mas Oliveira Salazar respondeu que nada havia a discutir, porque Goa, Damão e Diu faziam parte de Portugal. Poucos dias depois, a 27 de Fevereiro, o primeiro-ministro indiano dirigiu uma carta ao Governo de Lisboa, exigindo a «devolução» do chamado Estado Português da Índia. O regime tratou de fazer publicitar nos jornais informação sobre os telegramas de apoio recebidos, mas de pouco lhe valeu. A base negocial proposta configurava um ultimato. Onze anos depois, ocorreu a invasão.


«Sempre encontra em Vossa Excelência o maior defensor de todos os portugueses»: o Grémio a "dar graxa" a Salazar
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​O Grémio também não quis ficar de fora das comemorações do 25.º aniversário da entrada de Salazar para o Governo, a 27 de Abril de 1953, ainda que dentro das suas possibilidades. Encerrado o expediente, os funcionários foram convidados (com aspas, é claro) a acompanhar os dirigentes no «cortejo de homenagem a Salazar». No entanto, a instituição não pôde satisfazer o pedido da sua congénere dos industriais gráficos, por falta de condições para arcar com os custos (4.000 escudos) da iluminação. Na acta da reunião da Direcção de 16 de Abril, ficou registada «a certeza de que a resolução tomada em nada abala o respeito que devemos, e connosco o País, ao Homem que tão bem soube impor-se à consideração do Mundo, além de que a nossa atitude bem significa termos sabido aproveitar a lição dia a dia ministrada por sua Excelência, a bem da administração do erário público».

Sem custos financeiros, a solidariedade para com o Governo da Nação expressa em 27 de Janeiro de 1961 foi acompanhada de «profunda repulsa pela nefanda ocorrência» com o Santa Maria. O assalto ao paquete, ousadia de um comando oposicionista liderado por Henrique Galvão, pôs a ditadura portuguesa nas bocas do mundo e foi o primeiro de uma sequência de acontecimentos que deixaram o regime à beira do precipício. Sobreviveu durante mais de 13 anos.

Chamem o “virguleiro”!

Salvo melhor opinião, julgo que há um excesso de vírgulas e até mesmo algumas delas devem estar mal colocadas. Sugiro que se consulte um técnico neste assunto». Escrita à mão no esboço de uma carta a Marcelo Caetano, a nota é assinada por “Alcindo”. Trata-se, seguramente, de Alcindo Teixeira, dono da histórica Farmácia Liberal, em Lisboa, à época (Outubro de 1969) dirigente do Grémio. Ele próprio suprime uma mão-cheia de vírgulas, de que o texto estava de facto repleto, mas não deixa de recomendar intervenção especializada.

Não se sabe se a carta a Marcelo Caetano foi mesmo enviada

A carta, sobre o impacto negativo de um acordo firmado entre o Grémio e a ADSE, acolhia um desabafo: «Não fizemos este acordo porque nos fosse possível fazê-lo, mas porque quisemos fazer o impossível [sublinhado no original] para colaborar com o Governo da Nação numa obra a todos os títulos digna de honra». Objecto de várias versões – a que foram apostos “vistos” de Maria do Castelo e Eurico Pais, membros da Direcção – não é possível confirmar se a carta foi mesmo remetida.
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